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A bicicleta do padre João
Mais um pedaço da vida do Lino
Trabalhando na sociedade juntamente com os cunhados, o sogro, a família do tio Antônio Trentin e o patriarca Serafim Trentin e a nona Rosa, tendo como vizinhos seu Artur Oliveira, Ângelo Fassini, Atílio Zanon pertencentes à nova comunidade de italianos que se radicaram no local, o Lino começava mais e mais aumentar seu circulo de amizades em função de seu cuidado com os animais, mas apesar de tudo isso ainda não tinha um cavalo para montaria, as opções para se deslocar um pouco mais longe eram a gaiota de bois, eficiente mas bastante lenta, a aranha com cavalo do sogro ou as famosas bicicletas de pau, comuns para todos os jovens de menos de 40 anos na região.

Esta é uma réplica das famosas “bicicletas de pau” feita pelo tio Ângelo Chierentin, em 2007, especialmente para mim em reconhecimento pela preocupação em conservar a história.
A bicicleta de pau era uma grande auxiliar nas caminhadas, sem pedais apenas podia ser montada lomba abaixo, e dependendo das condições da estrada corria a canhada toda e até podia subir uma parte da lomba do outro lado, movida pela inércia, depois era empurrada lomba acima até o topo onde começava um novo ciclo. Era o meio de transporte mais comum entre os italianos para se deslocar para outras capelas nos domingos de festa. Pequenas distâncias como da Vila Trentin a Jaboticaba uma hora de caminhada se transformava em menos de meia hora de bicicleta, logo podemos ver a vantagem do uso desta tecnologia. Parece loucura usar um veículo que só anda lomba abaixo, mas a verdade é que foi muito útil naqueles tempos, no entanto a verdadeira loucura ainda estava por acontecer…
A bicicleta do Padre João
Aqui precisa se abrir um parêntesis para um primo, quase um irmão mais velho para o Lino, o padre João Piovesan. Nas férias de fim do ano de 1953, o seminarista, já quase padre, João Justo Piovesan empreendeu uma pequena aventura que precisa ser registrada para que se possa continuar a história. Ele se preparava para visitar os pais e irmãos em Frederico Westphalen, numa última viagem antes de sua ordenação. Na época o transporte disponível era o trem de Santa Maria até Santa Barbara e depois tomar o ônibus “Ferroviário” até Frederico. O dito ônibus fazia a linha de Santa Barbara a Iraí, duas ou três vezes por semana, quando conseguia vencer os atoleiros. Conta-se que muitas vezes passava dias sem aparecer devido às más condições das estradas, neste caso se cumulavam passageiros esperando em Santa Barbara, quando saía superlotado, demorava mais uns dias para aparecer. Esta era a opção de transporte do jovem diácono João Piovesan, talvez ele tenha pensado em fazer o trecho a pé, poderia ser menos demorado, no entanto ele optou por uma outra solução: uma bicicleta Goricke, 1951, seminova, negócio de ocasião, que o padrinho, o tio Antonio (toni Torchio) deu de presente na ordenação diaconal, economizaria a passagem trem-ônibus, faria um belo esforço mas ganhava a liberdade.
Pelo caminho alternativo: Cruz Alta-Condor-Palmeira das Missões, ficava apenas 290 quilômetros, hoje se faz de carro em pouco mais de três horas.
Na ocasião o João Justo preparou a mochila com algumas roupas, pacotes e mais pacote de publicações como: Revista Rainha dos Apóstolos, calendários religiosos e Anuários Católicos, e pôs o pé na estrada, ou melhor, no pedal da Goricke aro 28 rumo a ao Baril, nome de Frederico Westphalen na época.
À medida que o caminho era percorrido o aventureiro ia fazendo amigos e vendendo livros, revistas e fazendo assinaturas, também a mochila ficava mais leve compensando o cansaço dos dias pedalados. Em menos de três semanas estava na casa dos pais curtindo as merecidas férias, infelizmente deveriam ser abreviadas em umas três semanas devido ao transporte escolhido. Lá no Baril, descobriu que em seu caminho tinha passado a menos de dois quilômetros da casa do primo Lino, o filho do tio Antoninho. Na volta não podia de deixar de fazer uma visitinha. Calculado o tempo de volta, pé na estrada de novo, e desta vez com uma parada obrigatória na Vila Trentin, que na época ainda não tinha nome, era um vilarejo pertencente ao então distrito de Seberi, próximo da capela de Jaboticaba. O ponto de referência para localização era a parada de ônibus, mais ou menos uma estação na esquina da Boa Vista, na bodega do seu Possidônio Padilha. Beleza! Era só ir pedindo de bodega em bodega até descobrir a do Possidônio e lá pedir informações. No segundo dia de volta já estava na casa do primo, recebido com honrarias dignas de um santo, como acontecia sempre que um padre visitava a comunidade. Apesar de ainda não ser padre pouco importava, sempre era uma honra ter um homem de fé como visita.
A narração da aventura da viagem causou um enorme impacto, mas mais do que isso, uma bicicleta que podia andar lomba acima, com certos limites, é claro, mas podia. Foi aí que terminou a aventura ciclística do João Justo, o primo apaixonou-se pela bicicleta, juntou os trocados, “trenta fiorini”, e comprou a bicicleta, provavelmente a primeira bicicleta de ferro do município de Palmeira das Missões. Agora os pés do Lino criaram asas! Podia ir a Jaboticaba em quinze minutos, as distâncias encurtaram. Saindo cedo dava pra ir num domingo até a Guabiroba, hoje São Pedro das Missões, pela estrada da cordilheira, encomendar um par de botas no Zandoná e voltar no mesmo dia.
Esta história é fundamental para entender o apelido “Tio Lino” que meu pai ganhou alguns anos mais tarde. (ela vem aí)
Corrida sem obstáculos
Os primeiros tempos (este é um trecho da história da família do Lino)
O primeiro ano, depois da mudança foi bastante duro, buscávamos água numa fonte que ficava mais de trezentos metros da casa, para lavar a roupa a mãe precisava ir até a sanga (arroio) um pouco abaixo da fonte. Nos primeiros meses tínhamos dois baldes de madeira para buscar água na fonte, umas duas ou três vezes no dia.
Na época o Leo tinha uns nove anos e eu sete, para carregar o balde de água usávamos uma vara, pouco maior que um cabo de enxada, que enfiávamos na alça do balde para facilitar o trabalho, como era subida, eu ia à frente, porque era mais baixinho, e o Leo atrás. Muitas vezes com o sacolejar das passadas chegávamos em casa com pouco mais de meio balde de água. Por isso fazíamos muitas viagens por dia. Mais tarde o pai fez uma zorra com uma forquilha e encaixou nela um barril que cabia uns dez baldes aí facilitou um pouco a nossa vida, ele buscava água no barril no final da tarde e nós apenas precisávamos buscar água fresca para beber durante o dia.
Esta rotina se estendeu por bastante tempo, quase um ano, neste meio tempo a mãe foi picada por uma bicho venenoso, que nunca soubemos o que foi, e com isso quase tudo o que tínhamos foi gasto com médicos e remédios, ela estava grávida da Luiza, com movimentos limitados por causa da perna enormemente inchada…
Corrida sem obstáculos. (esta é uma das mutas histórias que permeiam nossas vidas)
Aqui é preciso fazer um parêntesis na história. Os personagens são a mãe, o Leo, o Leonildo e eu. A mãe grávida e com um problema numa perna, recém estava sarando da picada do bicho. Neste dia o Pai estava fora arrastando toras para a serraria do tio Luiz Trentin, o Leo e eu ficamos cuidando da casa e a mãe foi lavar roupa na sanga, o Leonildo não quis ficar conosco e foi com a mãe, ficou brincando no banhadinho a tarde toda.
Um pouco antes do pôr do sol, quando as sombras começam a ficar compridas, o matinho da fonte começava a fazer sombra no poço onde estava o lavador a mãe terminou de torcer as últimas peças de roupa e colocou na bacia para voltar para casa.

Lavador – Este dispositivo prático era usado para lavar roupas de joelhos no lado do arroio que o barranco terminava em zero, em geral do lado de dentro das curvas do rio ou arroio.
O lavador era um dispositivo, muito usado na época para facilitar o trabalho de lavar no arroio, como é muito difícil de descrever terei que desenhar. O lavador ficava do outro lado da sanga, tinha uma pinguela feita com três paus roliços para atravessar o arroio. O poço do lavador ficava numa curva do arroio de forma que ao norte e leste ficava a nossa terra, no quadrante sudoeste ficavam as terras do Seu Tatão, o lavador estava daquele lado porque não tinha barranco no lado de dentro da curva do rio. No quadrante sudeste ficava o banhadinho que era um espaço bastante úmido, mas gramado, no nordeste ficava o potreiro, um espaço gramado com aclive ao norte razoavelmente acentuado, no noroeste ficava o matinho da fonte, hoje é a fonte que abastece a Vila Trentin, indo ao norte costeando o matinho ficava a trilha que ia para a nossa casa, uns trezentos metros de distância. A uns cinquenta metros lomba acima tinha a trilha que entrava no mato e ia para a fonte. Do poço do lavador até a fonte dava uns trinta metros, formando um triangulo de trilha, mas a trilha não era muito usada.
A mãe terminara de lavar as roupas, o Leonildo brincava no banhadinho, enquanto o sol se punha. Era preciso apressar o passo para fazer a janta e as lidas do fim do dia antes que o Lino chegasse do trabalho.
– Leonildo! Vamos para casa! – chamou a mãe já com as roupas torcidas na bacia e pronta para atravessar a pinguela em direção ao rancho.
O guri veio correndo atravessou a pinguela e se postou do lado da mãe. A mãe pegou a bacia de roupa e se dirigiu para a pinguela quando o pequeno infante de então três anos e pouco anunciou categórico:
– Eu quero colo.
A mãe tentou argumentar que não havia condições de levar a bacia e ele no colo, nem falou de sua condição de grávida, porque ele não iria entender mesmo. O impasse estava criado o guri queria colo e a mãe não tinha condições de dar. Nenhuma argumentação foi capaz de demover o garoto, enquanto isso o sol se punha e começava a escurecer… A mãe foi para casa com a bacia de roupas e o pirralho ficou chorando do outro lado do arroio.
Chagando em casa preocupada com o caçula, tomou uma daquelas decisões que as mães sabem tomar muito bem, o Leo tinha condições de trazer o Leonildo nas costas se ele não quisesse caminhar, o Liceo, eu, levaria o balde para buscar água na fonte assim não ficava perigoso, pois escurecia rapidamente.
O Leo, consciente de sua responsabilidade foi reto ao poço do lavador para buscar o irmão caçula, eu tomei a trilha da fonte para encher o balde, depois o Leo me ajudaria como de costume a levar para casa. Para encher o balde tinha uma caneca, a gente pegava água na fonte, subia o barranco e depositava no balde, isso tinha que ser feito umas oito vezes para encher.
O lusco fusco do entardecer dava um arrepio, ainda mais dentro do mato, qualquer vulto ou som parecia maior e mais assustador. Os outros dois estavam fora do mato onde ainda estava bastante claro.
– Leonildo! Eu te levo de macaquinho. Já esta ficando noite…
– Nãaããõ! Eu quero o colo da mãe…
– Eu te levo no colo!
– Não!
– Eu vou te deixar aqui.
– Não!
Não importava a pergunta ou proposição, a resposta era sempre não, sonoro e chorado…
Neste meio tempo eu já enchera o balde e esperava o Leo para me ajudar a levá-lo para casa, mas só ouvia aquele diálogo infrutífero. Já com muito medo, e sem forças para levar o balde sozinho, resolvi ir em direção aos dois para chamar o meu ajudante. Como a trilha da fonte ao lavador era pouco usada tinha galhos e taquaras secas que começaram a quebrar na medida em que eu avançava. O barulho das taquaras quebradas deve ter despertado algum temor nos dois que o Leo pediu para o Leonildo parar de chorar e ele parou, fez-se um silêncio assustador. Nisso dei mais alguns passos para chamar o Leo para me ajudar. Foi então que ouvi o seguinte:
– Leonildo escuta! Falou o Leo, e ao ouvir o estalar das taquaras quebradas e continuou… ssss… Nisso eu gritei por eles, e o Leo arrematou:
– Leonildo escuta! Eu acho que é o diabinho…
Em seguida vi o vulto dos dois a toda a velocidade lomba acima como se disputassem uma corrida de cem metros rasos. Não tive outra escolha, alguns minutos depois cheguei, de língua de fora, arrastando o balde sozinho. Os dois ainda resfolegavam de língua de fora em função da corrida.
Outras histórias envolvendo o tal diabinho, acho que é o Leonildo que deve conta-las.
Algum tempo depois a tia Eulália ficou uns meses lá em casa para ajudar, mas isto é outra história.
O parto da porca.
Esta é outra das histórias do Seu Lino, e suas aventuras como veterinário da região (1).
O fato ocorreu no inverno de 1978, na época das férias de inverno, quando se encontravam na casa do Seu Lino, o narrador deste acontecimento e seu amigo Geraldo, na época estudante do primeiro semestre da faculdade de medicina.
O dia estava chuvoso, e como era de costume “já que não dava para trabalhar”, nos reuníamos para comer rapaduras de “açúcar preto” (mascavo), com amendoim, “atiçar” os cachorros contra os gatos e, quando a chuva acalmava, correr atrás das lebres, que graças à nossa péssima pontaria quase sempre escapavam ilesas aos tiros de nossas velhas espingardas.
Estávamos com as espingardas prontas para sair à caça, quando chegou um vizinho, morador do “Travessão do Coqueiro”, localidade distante uns seis quilômetros da nossa casa.
– Buenas seu Lino!
Foi dizendo o “brezocollo” (denominação que os descendentes de italianos davam aos caboclos).
– Vim aqui pro sinhô socorrê minha porca que tá produzindo.
– Prontamente!
Respondeu o Seu Lino, usando sua tradicional expressão para quando se prontificava a atender a um chamado, enquanto agarrava a costumeira sacola de couro, equipada com a “castradeira”, uma “agulha de sutura” feita de palheta de guarda-chuva, um cano de guarda-chuva cortado em diagonal, que servia para “furar o bucho” quando o animal estivesse “estufado”, um “aparelho de injeção” e outros aparatos não menos exóticos e contaminados que os já citados.
Entusiasmado com a possibilidade de assistir a um parto, e talvez até prestar alguma ajuda, o nosso calouro da medicina se prontificou a acompanhar o Seu Lino. Como também me interessava pelo assunto, resolvi seguir a comitiva.
O Seu Lino enfiou seu “Ramenzoni Standard” na cabeça (2), saltou no assento do trator Valmet, e assim seguiu acompanhado da comitiva que ia pendurada ao trator.
Chegando à casa do Seu Moreno, fomos logo acudir a porca.
Seu Lino tomou a dianteira, aproximou-se do animal – que tendo “produzido” um leitão – continuava fazendo muita força, com pressa de mostrar suas habilidades.
A porca era grande e bastante gorda, dificultando o trabalho do sensível obstetra, que apalpava cuidadosamente a barriga da porca.
Bastaram alguns segundos de exame para que o mestre, olhando para nós com ar de sabedoria, desse o diagnóstico definitivo:
– Não tem mais leitão algum! Ela somente gerou um porquinho.
Inconformados com a simplicidade da intervenção, o filho do veterinário argumentou:
– Acho melhor que o Geraldinho também examine o bicho, pois com seu conhecimento científico talvez tenha um parecer diferente.
Contrariado, Seu Lino permitiu o exame, esperando que o “médico” confirmasse o diagnóstico, mas nosso amigo “quase médico”, depois de tatear a barriga da porca, querendo forçar um “intervenção cirúrgica”, pintou um quadro muito grave, e que “pela sua experiência”, pensava que somente uma casaria poderia salvar o animal, pois havia um leitão atravessado e somente a Cesária poderia salvar a porca.
Seu Lino, apesar de contrariado, cedeu ao conhecimento científico e se entusiasmou em poder, mais uma vez exibir sua habilidade cirúrgica. Foi logo retirando os apetrechos da sacola e depois de pedir para amarrar o bicho deitado de lado na posição adequada, foi logo pelando o local para a incisão.
Diante do olhar curioso dos assistentes, que seguravam a pobre porca, e, com muita destreza, rapidamente o “veterinário” cortou a porca e enfiou a mão para dentro, aumentando o clima de expectativa dos acompanhantes do parto.
Numa expressão de aborrecimento e desapontamento, olhando para a platéia, Seu Lino foi retirando a mão:
– Como eu já havia diagnosticado, aqui não tem leitão nenhum!
A chacota foi geral, e Seu Lino contrariado e meio bravo por causa dos conselhos dos curiosos que o induziram ao erro, tratou de fazer a sutura, juntar os apetrechos e voltar ligeiro para casa, para tomar um trago e esquecer o fracasso da cirurgia. Subiu no Valmet que era famoso por ser “o mais rápido da região” e sem esperar que seus ajudantes fizessem o mesmo, acelerou a máquina e partiu se vingando da dupla que teve que amargar seis quilômetros a pé para voltar para casa.
(1) Seu Lino conhecia toda a região, atendia dois ou três “pacientes” por semana, e sabia a data de nascimento da maioria das vacas, cavalos e outros bichos da região.
(2) Ramenzoni Standard era o chapéu que Seu Lino usava, era mais fácil ver ele sem calças, do que sem seu companheiro Ramenzoni.
Aconteceu em Palmeira
Lá no interior de Palmeira, no tempo em que se criava a bicharada solta ao redor de casa, todos tinham suas galinhas, vaquinhas e principalmente alguns porquinhos que produziam banha e carne para o consumo da família.
Para uma criação pouco numerosa, não se justificava ter um cachaço (porco reprodutor) em cada propriedade. Pois foi aí que o problema se criou…
“Seu Lino” era um dos poucos que se dava ao luxo de ter um reprodutor – o que mais tarde veio lhe dar “dor-de-cabeça”.
O cachaço, apesar de ser forte e muito bom reprodutor, não era muito grande, por isso, além de comer pouco tinha a vantagem de ser facilmente transportado para as frequentes visitas às porcas da região.
Não passava uma semana sem que aparecesse alguém pedindo o bicho emprestado, e “Seu Lino” nunca dizia não, satisfeito com a fama de seu animal que, muito assanhado, se ia levado em uma carriola – o meio mais prático de carregar o bicho que era de pequeno porte.
Passado algum tempo, quando na região já não existia porca com quem o bicho não houvesse cruzado, foi então que Seu Lino passou a sofrer as conseqüências do empréstimo do porco, pois toda a vez que ia usar o carrinho-de-mão, para qualquer trabalho perto de sua casa, era surpreendido pelo bicho safado, que surgia inesperadamente e se jogava em cima do carrinho, imaginando que seria levado para mais uma visita amorosa a alguma leitoa da vizinhança.
(A história é real e o narrador é filho do Seu Lino).
Il cigro de la vecchia Gusta Bertola
Algumas rotinas são diárias outras semanais, mensais ou até anuais, mas são sempre rotinas, ritos que se repetem indefinidamente sempre da mesma maneira. A “messa dominicale” da velha “Gusta Bertola” não era diferente, assim como os Piovesan de Toni, sempre iam para a primeira missa, a das oito horas, a vecchia Gusta Bertola ia para a segunda, as nove, ficava mais cômodo, não precisava levantar tão cedo, pois ela morava passando o Toni uns quatro quilômetros pro lado de São João. Depois quando ela voltava, passando o passo do Soturno, dava uma chegadinha na casa do Toni, que a esta altura já estava bebendo um copo de vinho e fumando um palheiro. Sempre tinha assunto para conversar e assim ela ficava pelo menos uma hora de conversa com o vizinho, e amigo do finado marido, mas não descia do cavalo, que ficava pisoteando e dando voltinhas.
Como isto já era uma rotina o Toni voltava da missa e arrastava uma cadeira para o terreiro e ficava na sombra da laranjeira esperando a amiga para conversar, fumando um palheiro e bebericando vinho, enquanto a nona preparava o almoço (il dinnare). A Ferruchia não tomava vinho, pelo menos aí não, pois acho que já era adepta do “se beber não dirija”. Chegava lá pelas 10 e meia e ficava mais ou menos uma hora conversando sobre os bichos, a plantação, o tempo e qualquer outro assunto que aparecesse até que lá pelas onze e meia a gurizada começava se aproximar da cozinha para almoçar. Então o nono a convidava para almoçar e ela agradecia e dizia que tinha que ir para casa que o almoço dela estava esperando, mas… se virava para o Lino, piazote de 14 ou 15 anos na época e pedia:
– Ció Lino fa-me um cigro?
O Lino pegava a brítola do pai, um pedaço de fumo e uma palha e fazia um cigarro de palha magistralmente. Exatamente como ela gostava, ia até a cozinha, acendia o cigarro no fogolaro, dava umas tragadas e levava para a Gusta Bertola, que agradecia e saia galopando o cavalo. Era uma rotina, e bem que o Lino gostava, pois era a oportunidade de dar umas tragadas no cigarro.
Imagine esta cena se repetindo um ano, dois ou mais. Podia combinar com a Gusta Bertola e talvez com o Toni, mas com o Lino eu duvido muito, no entanto a cena se repetia e se repetia… até que um dia…
O Toni arrastou a cadeira para a sombra, preparou seu palheiro, pegou o copo de vinho e ficou esperando. Chegou a Gusta Bertola, ficou conversando um tempão, foi convidada para almoçar, agradeceu e começou a procurar pelo Lino que não estava aí para fazer o palheiro. Desta vez foi o Toni que gritou:
– Lino zé hora de fare el cigro dea Gusta Bertola!
O Lino apareceu pegou a palha, o fumo e a brítola e se foi lá para cozinha fazer o cigarro de palha, passados alguns minutos veio com o cigarro aceso, alcançou para a vizinha que saiu a galope para casa. Talvez o Toni e a Gusta Bertola não tenham se dado conta, mas a rotina estava quebrada.
Passado um minuto, talvez nem isso, a Gusta Bertola estava de volta, bestemando de uma forma que não combinava nem um pouco com alguém que voltava da missa. Com os cabelos sapecados e umas manchas pretas no rosto. O Lino tinha colocado umas “dieze o dodeze teste de fuminanti” (cabeças de palitos de fósforo) no palheiro… Acho que foi uma das poucas vezes que o Toni perdeu a paciência com ele. O que nunca consegui descobrir é se, e quanto ele apanhou do nono. Afinal os dois gostavam de aprontar “dispetti”.
Tem muito mais histórias envolvendo “il cigro dea Gusta Bertola” …
A vaca da sogra
Antes de iniciar esta história, para que não se cometa nenhuma injustiça contra Seu Lino, contra a Dona Maria ou contra a vaca Paloma, preciso fazer um esclarecimento.
Com todo o respeito (e medo?) que Seu Lino tinha pela sogra, sempre procurava deixar bem claro, que quando usava o termo “a vaca da sogra”, jamais lhe passava pela cabeça qualquer interpretação maliciosa, queria apenas referir-se à vaca que pertencia à sogra.
Dona Maria, sempre muito exigente com a saúde e demais cuidados para com seus animais, tinha uma predileção especial pela vaca Paloma, que se dizia ser uma das mais leiteiras da região.
Muitas vezes enquanto Ludomila e Tarcila, as filhas de Dona Maria, ordenhavam a vaca, a velha matriarca ficava observando o animal, atenta a qualquer sinal que pudesse indicar uma anormalidade.
Nesta época a enérgica senhora não metia a mão numa vaca para tirar leite, e quando alguém a questionava sobre o fato, simplesmente perguntava: “Por que é que a gente tem filhas?”
Certo dia enquanto ordenhavam a Paloma, Dona Maria observou que a vaca estava diferente, meio arrepiada e um pouco “descaída”. O fato recomendava chamar o Lino para examinar a distinta ruminante. Além de genro de Dona Maria, Seu Lino, também era conhecido na região como veterinário devido aos seus conhecimentos da medicina animal, e, tanto conhecia, que sabia até mesmo a data de nascimento da maioria das vacas, cavalos e outros animais da redondeza.
Não tardou para que o dedicado “doutor” atendesse a mais esse chamado e, mesmo antes de chegar perto da vaca, já fosse dando o diagnóstico definitivo e prescrevendo a medicação:
– É pura verminose…
– Esta vaca está fraca por causa dos vermes e por isso precisa urgente de um vermífugo para acabar com eles e um tratamento a base de cálcio intravenoso para se fortalecer novamente.
Deve-se esclarecer que o cálcio intravenoso era a prescrição preferida do nosso especialista já que na região ninguém tinha os aparelhos nem sabia aplicar esta medicação, o que ele fazia com muita destreza, e, também por isso, todos tinham-lhe muita consideração como técnico das ciências veterinárias.
Dona Maria que prezava mais pela ruminante do que por muito outro ser inteligente, não questionou o tratamento (também não cabia questionamento, porque de vaca o Lino entendia) e mandou buscar logo os remédios para restaurar rapidamente a saúde do animal.
Chegados os medicamentos, lá estava novamente o Tio Lino (1), pronto para mais uma intervenção, e esta era de muita responsabilidade, porque tinha que mostrar para a sogra como tinha sabedoria e valor.
Passou o maniador (2) na vaca, palanqueou (3) bem palanqueada, pegou os frascos encomendados e foi preparando o tratamento salvador.
– Primeiro vou fazer o cálcio que é mais difícil.
Comentou o veterinário enquanto com a agulha perfurava a jugular da vaca para aplicação do medicamento. O sangue jorrou forte e ele rapidamente conectou à agulha a mangueira do frasco previamente preparado em sua mão.
Mal se iniciou a aplicação, sob o olhar angustiado do especialista, a vaca começou a estremecer, enquanto ele rapidamente soltava o maniador e tratava de retirar a letal medicação.
Os assistentes, sem perceber a gravidade do fato, imaginavam que fosse uma reação alérgica ou qualquer tipo de não tolerância à medicação, mas Seu Lino, com sua larga experiência, já percebia do que se tratava.
Libertada rapidamente das cordas, a vaca deu dois passos para frente e caiu inerte, já sem nenhum sinal de vida.
Temendo a reação da proprietária, o veterinário preferiu dizer a verdade, e, com seu costumeiro hábito de ver o aspecto positivo dos fatos, explicou:
– Mudaram o frasco do vermífugo, e fizeram muito semelhante ao vidro de cálcio. Foi uma pena… mas ao menos garanto que não sobrou verme nenhum…
Sem aguardar os agradecimentos da sogra pelos serviços prestados, Seu Lino juntou seus apetrechos, montou na égua Vitória e sem nenhuma perda de tempo tomou o rumo de casa.

Sempre cercado de animais o Lino fazia do treinamento de animais uma diversão, e as crianças participavam disso.
(1) Como a maioria das pessoas mais jovens do povoado e arredores eram sobrinhos de Seu Lino, ficou generalizado chamarem ele de Tio Lino.
(2) Tira de couro com aproximadamente quatro centímetros de largura, usada para imobilizar o animal (a tira plana não provoca luxações).
(3) Palanquear significa amarrar o animal em um tronco (palanque) geralmente em lugar limpo e isolado para facilitar os trabalhos de cura de bicheiras, vacinas, corte de chifres, castração, etc.
O cupido ocupado
O ano era 1944, o local, a vila de Nova Palma e arredores, mais precisamente entre o Bom Retiro e a Linha Base. Na quarta colônia da imigração italiana o cupido andava extremamente atarefado – também pudera com aquelas famílias de 12; 15; 17 ou até 24 filhos – que não tinha mais como dar jeito de juntar todos os casais possíveis. Acho que ele deu uma cochilada, aí os morcegos assumiram seu posto – Isso mesmo! Os morcegos…
– Pois bem! Vamos à história.
Aqui é importante ficar fiel aos fatos, toda a juventude daqueles dias se reunia na igreja, no domingo de manhã, vindos de todas as linhas, desde Ivorá até a Linha Seis – da Linha Sete em diante moravam os alemães, mas estes não iam à missa, eram protestantes e tinham sua igreja e frequentavam o culto na Linha Sete. Os italianos, todos católicos, jamais faltavam à missa na igreja da Santíssima Trindade em Nova Palma, é claro que nem todos iam para rezar, muitos iam para ver as gurias ou elas para ver os rapazes. Depois da missa alguns momentos de cochichos e pequenas conversas e cada família voltava para casa, para suas linhas ou redutos, à tarde se reuniam para jogar bochas ou alguma outra atividade social, até aí tudo bem, os rapazes se encontravam com as moças e os casais iam se formando naturalmente. O trabalho do cupido estava funcionando muito bem – acho até que ele andou cochilando – quando começou a acontecer um probleminha, algumas linhas tinham mais moças, outras mais rapazes e começava ficar difícil juntar todas as parelhas. O jogo de bochas até que levava rapazes de uma linha para outra, mas não dava conta do recado. O vigário dava sua força promovendo festas religiosas em cada recanto tentando atrair a juventude de um lado para outro, mas ainda assim tinha muitos casais para juntar. Até porque muitas moças não se sentiam atraídas por jogadores de bochas, ou de futebol, ou seja lá o quê, elas queriam ver outras qualidades nos seus pretendentes.
Chega de enrolação voltemos aos fatos – 1944 no final do inverno, Linha Base, Linha Um e Linha Dois que ficam na região mais montanhosa e pedregosa convivem com uma tragédia os morcegos raivosos dizimam o gado, e é claro os bois de canga, responsáveis pelo arado e pela preparação da terra. “Tutti i contadini”, os colonos da região, apelaram com a ajuda do vigário nas missas de domingo, por colonos de outras linhas que tivessem bois disponíveis para arar suas terras.
Aqui a história se particulariza. Como eu quero me deter aos fatos só tenho provas de um caso, por isso vou me limitar a ele: – Na Linha Base o Valentin Piovesan e os Trentin, o Bortolo e o Jorge, ficaram sem bois de tração para arar a terra. O Toni Torccio, meu avô do Bom Retiro, enviou o Achiles e Lino para lavrar as terras do Tio Valentin Piovesan. O Achiles era conhecido como moço trabalhador e o Lino, piazote de 16 anos, era conhecido na região por falar com os animais, os bois dele obedeciam até os seus pensamentos.
Era início da primavera, tempo de lavrar a terra e começar o plantio. Na família do Bortolo não falta mão de obra, O Gervasio, a Rosa, a Basilides, o Luis, a Ercilha, a Iria, todos já grandinhos puxam uma enxada que dá gosto, os pequenos ficam em casa, mas preparar toda a terra sem bois seria impossível. A saída veio com os irmãos Piovesan, Achiles e Lino que em poucos dias lavraram a terra do Valentin e estavam disponíveis para ajudar outros vizinhos. O plantio estava garantido.
Trabalho duro, mas sempre no fim da tarde, depois da janta, tem um tempinho para contar histórias, a luz de lamparina, ou jogar cinquilho com pipoca e vinho. O jogo exige cinco participantes em cada mesa – este é o tempo para socializar – na mesa principal ficam o Bortolo, com o irmão Jorge e o filho Gervásio, o Tio Valentin e o Achiles. Na outra mesa ficam a Rosa, a Basilides, o Luis, a Ercilha e o Lino. O jogo não tem parceiro fixo e cada rodada jogam dois contra três, é muito divertido. Fica fácil de imaginar o tipo de conversa de cada mesa, na dos patriarcas e os mais velhos provavelmente se fala de terra, trabalho, colheita entre outros, na mesa dos jovens, brincadeiras, risadas, etc…
– Bah! Eu ainda não comecei contar a história, – pois bem, depois do jogo é preciso descansar para estar pronto para mais um dia de trabalho.
O Achiles e o Lino alojados no quarto de hospedes, na cantina do Bortolo, tem liberdade para conversar e é aí que “a porca torce o rabo” como se diz em gauchês. O Lino leva o primeiro grande pito de sua vida:
– “Onde se viu um piá de 16 anos se refestelando pras moças, inda mais em se tratando das filhas de um respeitável senhor, amigo e vizinho do tio Valentin, de uma família tradicional italiana.”
– Esta parte da história o Lino, meu pai, me contou por alto. Certa vez, aí eu resolvi tirar a limpo e tentei conhecer a versão do Achiles, mas só consegui mais alguns detalhes, ele era o mais velho da família, sério, sisudo e taciturno, isto é de poucas palavras. Uma história quase apagada pelo tempo se não fosse pelo Pio, irmão do meio dos dois. Visitei ele, no ano passado, e quando comecei a falar das cartas de amor que o Lino e a Bazilides, trocaram durante os seis anos de namoro…

As duas primeiras cartas trocadas pelo casal, tenho a coleção toda, exceto uma que não chegou ao destino.
– Ah! Esta é a história que eu queria contar, o início do namoro de meus pais.
Aí ouvi mais detalhes da história, pois o tio Pio era quem, segundo ele, que escrevia cartas que meu pai assinava, no início do namoro, pois ele não tinha paciência para escrever e julgava a letra muito feia. Chegando em casa fui imediatamente ver as cartas, o fato estava documentado – as primeiras cartas tinham uma letra no texto e outra na assinatura, a medida que o namoro foi avançando as cartas mudaram de letra e de tratamento, os termos no início um tanto formais foram evoluindo até o casamento. Esta história toda que acabou por aproximar o casal Lino e Bazilides, também levou o Tio Pio para o lado de Linha Base pros lados de outro vizinho do tio Valentin, o velho Pegoraro, que tinha uma filha muito prendada, mas esta é outra história…
– Bem com isso, como vocês podem ver que em Nova Palma até os morcegos andaram fazendo o trabalho do cupido enquanto ele cochilava…