Finalmente a história que explica o apelido.
Como era de costume cada mês ou dois a gente ia visitar o tio Achiles e a tia Pierina, era uma festa, brincar de carro de lomba, subir os morros a cata de guabijus, tomar banho no rio entre outras brincadeiras. Quase sempre ia toda a família e muitas vezes a turma do tio Luís e da tia Irene ia junto, eles ficavam no Vô deles, o Bortolo Schiavinatto, e nos seguíamos um pouco adiante. No final do domingo a gente voltava cansado, mas eufórico. O meio de transporte mais usado era a carroça do vovô Bortolo com os cavalos brancos. Como na subida os cavalos não tinham força para puxar toda aquela carga, em geral, a Benildes, a Zélia, o Selito e o Dimas mais o Leo e eu, desembarcávamos e subíamos a pé, depois a gente embarcava e continuava a viagem. Numa destas viagens fomos somente eu e o Leo com o tio Luís e família, a mãe estava com a Luiza pequena e como era costume ficava em casa esperando a visita das amigas, vizinhas, primas e comadres. O pai também ficou em casa para ajudar e atender as visitas.
Logo depois do almoço começaram a chegar as visitas, as irmãs, cunhadas e primas que vinham conhecer o nenê, a Luiza, e fazer a visita de praxe à mãe. As crianças vieram de carona, nem tanto pra ver o nenê quanto para andar de “carreto”, aquela maravilha que transformava a estrada numa pista de automobilismo e de aventura, a montanha russa daquele tempo. A estrada de terra vermelha, bem patrolada ficava uma verdadeira pista de corrida, pois o trafego de carroças quase que vitrificava os trilhos deixando-os muito duros e lisos, isto diminuía muito o atrito melhorando o desempenho do carro, inda bem que ele tinha freio.
Não demorou muito que a turma percebeu que o carro não tinha motorista, os dois titulares tinham ido viajar. Conversa vai conversa vem e nenhum dos visitantes se animou a dirigir o caminhãozinho, apesar do tio Lino, ter tentado formar algum motorista, empurrando o carro pelos gramados. Com a insistência cada vez maior da turminha para andar na estrada, o dono da casa cedeu aos apelos, prometendo uma corrida lomba abaixo com a gurizada na carroceria. Um carro de lomba comum não chegava a ganhar velocidade na dita pista, mas o “carreto” com rolamentos e revestimento de borracha nas rodas se comportava quase como uma bicicleta.
Aqui vale um parêntesis: As bicicletas de pau eram muito populares na região exatamente por isso, tendo um centro de gravidade mais alto, conseguiam ganhar velocidade em declives menos acentuados, muito comuns na região. Lá no tio Achiles nem pensar em bicicletas, pois as descidas chegavam a quase 45 graus, seria suicídio andar de bicicleta, lá o ideal era o carro de lomba, feitos com umas bolachas de uma tora como rodas, uma tábua que era ao mesmo tempo chassi, acento e apoio, dois sarrafos, um fixo como eixo traseiro e outro móvel como eixo dianteiro que se guiava com os pés. O caminhãozinho tinha as vantagens dos dois, a estabilidade de quatro rodas do carro de lomba e a velocidade da bicicleta, com umas vantagens adicionais como banco para o motorista, direção imitando um caminhão de verdade e o rodar macio dado pelo revestimento de borracha das rodas.
– Tio Lino! Desce com a gente no carro de lá do Luiz Moreira. – Gritava a gurizada, e foi tanta insistência que o tio cedeu.
Empurraram o carro até o topo da lomba, subiu toda a gurizada no carro com o tio na direção e despencaram lomba abaixo, tudo foi maravilhoso, só que o motorista não desceu a lomba toda, no final da primeira parte tomou o caminho de casa e parou no gramado. Desceram o trecho mais uma ou duas vezes, mas a gurizada queria mais ação, mais velocidade. Finalmente acabaram convencendo o tio a descer toda a lomba como de costume, até o chatinho do tio Luís. Mais uma vez lomba acima, criançada toda na carroceria e o tio espremido na cabine, eu disse espremido porque a cabine foi projetada para um guri e não para um adulto, apesar de caber um adulto dentro os comandos não estavam projetados para tal, não tinha regulagem de banco. Um adulto poderia sentar-se razoavelmente confortável e dirigir, mas não encolher a perna suficientemente para pisar no freio, por exemplo.
Pois bem! Eu estava falando que a turminha convenceu o motorista a fazer o trajeto completo e lá vinham eles… Passada a primeira curva acentuou-se a descida, bem carregado o carro ganhou bastante velocidade, e a plateia adrenalina. A euforia ia contagiando a gurizada enquanto a velocidade começava a preocupar o motorista que tentou dar uma beliscadinha no freio, mas não conseguiu encolher a perna suficientemente, a gritaria da sobrinhada aumentava, e o pavor do motorista também, se aproximava a segunda curva e depois a descida se acentuava mais ainda, depois vinha o chatinho onde o carro perderia velocidade e pararia, este era o comportamento esperado pela piazada acostumados com o trajeto. No entanto, não era esta a experiência do motorista. (para quem não leu, leia o Episódio 2 da bicicleta do Padre João). O caminhãozinho tinha rolamentos, exatamente como a bicicleta, a experiência de descer sem freio este trajeto ele tinha feito alguns anos antes, e o chatinho não tinha sido suficiente para perder velocidade. Bateu o pavor, ele nem pensou na possibilidade de frear com a mão, mantendo apenas uma no volante. Precisava achar uma saída urgentemente, o último trecho da descida estava quase no fim, o bólido atingindo a velocidade máxima, a criançada fazendo a maior algazarra, a estrada passando numa velocidade assustadora. Chegou o trecho plano aliviou um pouco a tensão, mas não diminuiu a velocidade…
– Raspar no barranco da estrada, esta seria a solução para parar e foi esta a decisão do tio. Do lado direito tinha um camaleão de terra solta, deixado pela patrola que passara há pouco. O tio Lino foi encostando o carro no barranco.
– Surpresa! O carro saltou o barranco como se nada fosse e se enfiou no matinho de branquilhos que tinha logo abaixo. A turma vibrou nunca tinham experimentado a sensação do solavanco de pular o barranco.
O matinho de branquilhos não era muito grande, consistia numa tira de uns vinte metros de largura por uns cinquenta de comprimento margeando a estrada. Os branquilhos não eram muito grandes tinham uns dois metros de altura em média, eram arvoretas bem galharudas e estavam quase sem folhas, era fim de outono. Outra qualidade deles é que todos os galhos terminam em espinhos, só ratos, e o tio Lino de “carreto”, se arriscam a entrar. A carroceria ficou quase fora do matinho, a turminha pulou fora para a estrada pelo caminho que o carro abriu, só o tio Lino não tinha como sair, era espinho prá todo o lado.
O motorista não podia perder a calma numa hora daquelas, tentou orientar a gurizada para puxar o carro para fora do mato, mas todos juntos não conseguiam nem mexer o caminhãozinho. Mandar algum deles pedir socorro era arriscado, não se podia deixar as crianças andando sozinhas por aí, na casa que ficava uns 300 metros de distância só tinha mulheres que com certeza não teriam força para puxar e provavelmente nenhuma sabia cangar os bois para fazer o serviço.
Mas era domingo de tarde, dia que o Lalo Franco, que morava perto do rio Fortaleza, costumava ir para a Vila Trentin tomar um trago e jogar um carteado. No domingo em questão não foi diferente, todo garboso vinha o “Seu Lalo” montando o tostado marchador quando deparou com aquele bando de crianças na estrada. Parou o cavalo e tentou ouvir o que as crianças queriam, era uma gritaria onde ninguém se entendia, ele só entendia tio Lino, tio Lino… até que pediu calma, e que um deles explicasse o problema.
– Ajuda para tirar o “Tio Lino” do mato. – explicou o maiorzinho deles. Foi então que o seu Lalo olhou para onde eles apontavam e viu o caminhãozinho. Com seu jeito fanfarão achou que era uma brincadeira das crianças. Não podia acreditar que o “Seu Lino”, veterinário conhecido na região, estivesse brincando de carro de lomba. A dúvida se desfez quando o próprio Lino, enfiou a cabeça na janelinha traseira da cabine e pediu ajuda. Seu Lalo amarrou o laço no eixo traseiro do carro e na chincha do cavalo e arrastou o carro de volta para a estrada.
O “Seu Lino” e as crianças agradeceram efusivamente e Seu Lalo seguiu seu caminho. A turma brincou mais um pouco, mas não desceram mais a lomba até o fim…
No final da tarde, depois que as comadres, cunhadas e vizinhas foram embora o Seu Lino saiu, foi buscar os guris na casa do cunhado, e como ficava no caminho deu uma passadinha no bolicho. Lá estava o Lalo numa mesa de carteado, ele tinha contado a história pra todo mundo, fez questão de levantar e pagar um trago para brindar a saúde do –“Tio Lino” – com ele fez questão de falar. Foi a partir deste episódio que o tratamento mudou de status e ele passou a ser conhecido como “Tio Lino”.
Para a criançada, aquele adulto que está presente toda hora, que participa das brincadeiras, que trata todos com carinho. Para os adultos, o gurizão que vive a vida que brinca e se diverte sem preconceitos…
Obrigado “Seu Lalo” pelo apelido! Valeu!
Agora vocês sabem porque até eu me refiro a ele muitas vezes como “Tio Lino”.