- Nesta foto, já dos anos 60, feita pelo tio Lino, aparece um típico caminhão de 300 arrobas da época. observe que o caminhão está com rodado duplo, mas o reboque está simples, no fundo os bois Bonito e Cruzeiro.
Mil novecentos e cinquenta e oito, em meio a grandes transformações políticas, sociais e econômicas algumas práticas e costumes ancestrais ainda resistem na Vila Trentin e arredores como a engorda de gado ou porcos a meia, consistia em pegar os animais de um parente ou vizinho para criar e engordar e depois repartir no dia da carneação. Esta prática foi trazida pelos italianos que costumavam trabalhar como meeiros para os proprietários de terras na pátria mãe. Os Piovesan, promovidos de “poveri contadini” na Itália para “matando cachorro a grito” no Brasil, não fugiam da regra. Outra prática, restrita aos mais abonados que tinham caminhão, era a de andar com rodado simples na traseira por falta ou para economizar pneus. Ficava engraçado, pois ao usar somente a roda de dentro ficava a ponta de eixo saliente para fora. Eu me lembro bem disso no caminhão do Tio José Rato.
– É claro que uma coisa não tem nada ver com a outra a não ser que o tio Lino entre na história.
Eu chamei meu pai de “tio Lino”, pois foi assim que ele ficou conhecido na redondeza. Todo mundo o chamava de tio Lino até o velho Lalo Franco que tinha idade para ser pai dele, na hora oportuna vou contar a história de como este apelido carinhoso começou. Não tenho como precisar a data, mas foi lá por setembro, pelos dias da enchente de são Miguel. Como havia chovido muito não dava pra fazer nada na roça e o Tio Atilio Zanon tinha uma leitoada para engordar e tinha terminado o milho da safra velha, aí o Lino que ainda morava com o sogro, o vô Bortolo, que tinha moinho se ofereceu para engordar os porcos à meia, e por isso estava aproveitando aquele dia de chuva para buscar os porcos na casa do tio.
Um passeio destes merecia ter uma companhia, e foi assim que o Léo e o pai começaram a viagem até Jaboticaba. Uma hora e meia de gaiota com o Mansinho e o Pintor, bois que compreendiam até os pensamentos do pai, na prática formavam um trio com ele, tal era a compreensão e o respeito mútuos.
– Lá iam os quatro, o pai, o Léo e os bois tranquilos pela estrada lamacenta, de barro vermelho pegajoso e ao mesmo tempo liso como sabão. Falando em vermelho esta era a cor de um lencinho que o Léo carregava, quando ele me contou a história disse que “lembrava muito bem do lenço, do barro e do caminhão Fargo com rodado simples no eixo traseiro.” Ele ainda fez questão de enfatizar – “Era um caminhão dos de 300 arrobas, o maior que tinha na época.” Logo depois que eles atravessaram a picada e entraram na estrada que ia da Esquina Boa Vista para Jaboticaba passou por eles o caminhão cheio de políticos que iam para um comício no Rodeio Bonito. Vendo aquele mundo de gente no caminhão o Léo, então com a inocência de seus seis anos, abanou freneticamente para os passantes, só que tinha um problema, eram políticos da UDN e o vermelho não era a cor deles e foi por isso que pai, filho, bois e tudo mais, ouviram um sem número de desaforos e xingações. No momento o Léo nem se deu conta do acontecido, o pai com toda a calma que lhe era peculiar ouviu tudo calado e seguiu seu caminho. Isso era outra particularidade dele, era praticamente impossível fazê-lo perder a calma, mas outra era a de não perder a oportunidade.
E a oportunidade estava esperando menos de um quilômetro adiante, logo depois da saída da linha São Luís, perto de onde morava o Luiz Marion, numa baixada a água da chuva alagava e formava um grande atoleiro, é claro que o Fargo, com rodado simples atrás, e cheio de políticos, estava atolado. O motorista não tinha muita prática em atoleiro, nenhum dos políticos se animava a descer do caminhão para empurrar ou procurar socorro. Mas o socorro vinha de gaiota, passo a passo e tranquilamente, em menos de intermináveis dez minutos apareceram na curva o Mansinho e o Pintor, de cabeça erguida como que dizendo, – andamos mais devagar, mas não atolamos. O Léo já antevendo a oportunidade de ver de perto o aquela maravilha da tecnologia, capaz de carregar 300 arrobas, a carroça sem bois, parada cheia de gente. E o Lino, que tinha poucos minutos para planejar a vingança dos desaforos que ouvira há pouco.
Passo a passo os bois mostravam sua superioridade puxando a gaiota com tranquilidade e firmeza, o condutor assobiava e de quando em quando estalava a assoiteira no ar, não que os bois precisassem deste tipo de incentivo, mas para mostrar que tinha o chicote, até se confrontar e ultrapassar o caminhão atolado na sarjeta da estrada. A carga do caminhão estava silenciosa, podia-se ouvir até o ruído de uma mosca, dava a impressão que cada um daqueles que pesavam sobre o rodado simples do caminhão não queria estar aí, um laçaço daquele relho deveria ser deveras dolorido, o desespero de estar preso ao ar livre, a inveja do quarteto de gaiota passando tranquilo, a sensação de inferioridade diante daqueles que há poucos minutos foram desprezados, a sensação de impotência… De dentro da cabine, o motorista, desesperado pela impossibilidade de entregar sua carga a tempo, mas o único com alguma sensatez no momento, dirigiu-se ao condutor da gaiota, antevendo a possibilidade de tracionar, com os bois, o caminhão para fora do atoleiro.
Impossível descrever a sensação de alívio tanto do motorista como da carga quando o carreteiro consentiu prontamente a solicitação, estacionou a gaiota um pouco adiante, desceu, desatrelou os bois, posicionou os bois diante do atolado, laçou um correntão no para-choques engatou na canga e solicitou aos bois que tencionassem o correntão. Estava tudo pronto e os bois ficaram aguardando a ordem para puxar, mas esta não veio… Aqui é necessário fazer um esclarecimento, nenhum boi sob o comando do Lino fazia qualquer movimento sem seu consentimento, ele e seus bois formavam um conjunto harmônico e perfeitamente integrado. O Mansinho e o Pintor pareciam conscientes da missão que os esperava.
Tudo pronto, faltava somente a ordem para puxar, com toda a calma característica e peculiar foi então que o Lino, que até então somente se dirigira ao motorista, se dirigiu aos que estavam na carroceria:
– Preciso esclarecer uma coisinha, meus bois estão muito descontentes com o que ouviram há pouco, pois eles são de outro partido. Eles estão dispostos a desatolar o caminhão somente se vocês gritarem – Viva o Brizola!
Impossível descrever a reação do grupo, parecia que tinham engolido a própria língua. O carreteiro simplório que ouvira calado seus desaforos agora estava no comando da situação, como um maestro agitou a mão como quem está regendo um coro. Saiu um “viva o Brizola” meio chocho que deixou desapontado o maestro e nem chegou aos ouvidos dos bois políticos. Mais uma vez o maestro levantou a mão e desta vez deixou claro: – tem que ser mais forte, com entusiasmo. A um novo comando saiu um “viva o Brizola” bem sonoro enquanto o maestro discretamente deu o comando e os bois que tencionaram o correntão e com firmeza arrastaram o caminhão para fora do atoleiro.
Não tenho como imaginar o que se passou na cabeça daquele grupo de políticos, mas sei que para o tio Lino, ficou a sensação de satisfação de não ter levado desaforo para casa.