Numa família religiosa, e curiosamente uma família onde os homens eram bons praticantes, uma coisa que não podei faltar no fim do dia era um momento para agradecer a Deus pelas graças alcançadas naquele dia. Graça é tudo aquilo que ganhamos numa proporção maior que nosso esforço, numa família como esta as graças caem aos milhares de todos os lados, imagine uma brincadeira das crianças, as crianças crescendo, o milho nascendo, a uva amadurecendo, uma vaca que dá leite, impossível enumerar tudo o que acontece em um só dia que não seja gratificante, ou seja, cheio de graça. Logo nenhum só dia podia findar sem dar graças a Deus, é claro que também tinha que pedir perdão por aquilo que não estava muito bem dentro da regra, isto tudo fazia parte da cerimônia de encerramento do dia que tinha que ser gloriosa. Infelizmente não vivi estas tardes com o nono e os tios, mas acredito que não poderiam ser muito diferentes das que vivi na minha infância com minha família.
“A luz do sol logo depois do ocaso começa a escassear, é o crepúsculo, o dia recheado de atividade cede lugar ao recolhimento da noite que devagarinho cobre com seu manto toda a terra. Os pássaros nas árvores começam o burburinho da busca pelo abrigo, as galinhas se recolhem e os porcos… ah! Os porcos começam a gritar por comida, lá vai a gurizada com um balde de milho ou uma abobora picada, e eles se acalmam, a mama clama pela lenha para fazer a polenta enquanto acende o chiaro (lamparina), a gurizada termina rapidamente as brincadeira e faz as lidas do fim do dia. Como borboletas vão buscar a luz ou o calor do fogão de chapa. Enquanto a água da polenta esquenta, esquenta também a chaleira para fazer o mate, a gurizada lava os pés para dormir e põe os chinelos ou tamancos.
Os cachorros anunciam a aproximação do pai que volta da lavoura, o piá que está sentado na caixa de lenha já se coça, pois vai perder seu lugar perto do fogo, é o lugar do pai, que chega e resume rapidamente o trabalho do dia. A mãe já está com o chimarrão pronto que começa a ser servido. A partir de agora começa uma das mais emocionantes celebrações de que já participei.
O templo: uma casa muito simples sala e cozinha, a sala de assoalho rústico e a cozinha de chão batido. O altar do sacrifício: um fogão rústico com grandes toros de lenha alimentando um fogo crepitante, sobre o altar a chaleira do chimarrão e a panela da polenta aquecendo a água, talvez uma frigideira aquecendo a banha para uma fortaia. A luz do fogo e das lamparinas ilumina o ambiente. Sem distinção de ministros ou celebrantes, cada um tem consciência de sua função. A mãe põe a farinha na panela da polenta enquanto o pai serve o chimarrão, os dois se revezam entre a cuia e a mescola, enquanto um toma seu chimarrão o outro mexe a polenta. As crianças menores encolhidas ao redor do fogão ouvem atentamente a liturgia da palavra a primeira parte da cerimônia: tempo reservado para a leitura de algum livro ou jornal, feita por um dos maiorzinhos sentado no banco com o texto sobre a mesa. Lá está a melhor lamparina uma que tem a chama fixa e grande. O leitor é quem preside esta parte da celebração, depois de uma ou duas páginas passa para outro, isto continua até a polenta e a fortaia ficarem prontas, ou um assunto lido exigir algum comentário ou discussão, onde o pai ou a mãe assumem o papel de ministro da palavra.
Pronta a ceia, interrompe-se a leitura e se prepara a mesa da comunhão. Às vezes o banquete é de apenas polenta, radicci, e um “toquetto de salado ou formaggio”, outras tem carne ou outros complementos. O pai agradece a Deus em nome da família os dons recebidos, ou se canta um agradecimento. É na hora da comunhão que os pais aproveitam para fazer uma revisão do dia dos filhos, o que fizeram? Como foi na escola? Aprontaram alguma arte? E assim por diante. Corpo e alma são alimentados nesta cerimônia simples e ao mesmo tempo completa.
Finda a comunhão os participantes se dispersam cada um segue um ritual específico: A mãe vai até o sechiaro para lavar os utensílios do culto, um dos filhos vai secar e guardar, os menores se ajoelham sobre o banco debruçando-se sobre a mesa o pai se ajoelha no chão e apoia os braços sobre a guarda duma cadeira, agora é ele quem preside. É hora de rezar o terço e a oração da noite. Normalmente as vozes das crianças começa vigorosa no início e finda, no final do terço, quase num murmúrio. Alguns até adormecidos…
Não importa como foi o dia agora já se pode dormir tranquilo, estivemos em dois ou mais reunidos em nome do Todo Poderoso, quem poderá nos impor medo?”
Mas o dia de graça muitas vezes ainda não findava aí, quando um dos menores terminava o terço dormindo nós dávamos uma cutucada para ver ele começar a responder: “Santa Maria ah ah nham nhmam aaa… e nos ríamos.
Nas noites de luar no verão a cerimônia era outra: a cantoria da qual falaremos oportunamente. Na tentativa de recordar e recontar esta cerimônia do Ângelus compus uma cantiga de ninar para minha sobrinha Isabela, filha da Leda, bisneta do Toni Torccio cuja letra está a seguir e a música num arranjo do Ernesto Piovesan, também bisneto do Toni numa gravação dele. Vale a pena ouvir.
Dorme Isabela baixar
Dorme Isabela
/: O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem. :/
1 – Devagarinho a bicharada silencia.
A passarada se recolhe pros seus ninhos.
A criançada vai cessando a gritaria.
E pouco a pouco se achegando pro ranchinho.
/: O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem. :/
2 – A Chaleira chia enquanto a mãe prepara o mate
O fogo arde no braseiro do fogão
Um piá resmunga e lá fora o cusco late
É o pai que chega com os bois no carretão.
/: O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem. :/
3 – Depois a cuia vai passando mão em mão
Um livro conta história que nos encanta
No lusco fusco duma luz de lampião
Enquanto a mãe lá no fogão prepara a janta.
O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem.
O sol se foi. E é noite já
Dorme Isabela, pra descansar.
4 – Depois da janta a criançada se acomoda
Pra cerimonia de encerrar aquele dia
Ajoelhados, debruçados sobre os bancos.
Rezando o terço na hora da Ave Maria.
/: O sol se foi. E é noite já
Dorme Isabela, pra descansar. :/