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Casado com os filhos em casa

Mamma mia

Mamma mia!

Eu sempre me senti bastante Trentin, apesar de ter o sobrenome Piovesan, por isso comecei a refletir sobre a riqueza cultural da família para tentar descobrir como foi se dando, no decorrer das gerações este crescimento. Afinal de contas como é que as famílias Piovesan vão diversificando e enriquecendo a cultura familiar? Tentando achar uma hipótese explicativa para o fenômeno conclui que estava dentro de casa. As tias Piovesan que me perdoem, eu as amo muito, mas  vou falar um pouco daquelas que foram escolhidas para serem as mães dos Piovesan.

Quando a nona Eliza foi escolhida, pelo que sei era porque a moça era Filha de Maria e certamente bastante religiosa, portava valores familiares, participava das atividades da sociedade, liderava o grupo pois carregava o estandarte, capaz de se ajoelhar e rezar e além de tudo era bonita. Tentarei analisar por partes, que valores o Toni viu naquela moça que eram importantes para a família que ele queria constituir?  Na época as moças não tinham muitas opções de socialização ainda não chegara o ano de 1922, as opções para elas era ficar em casa, ir à missa no domingo e ficar em casa o resto do dia, eventualmente acompanhar a mãe a uma visita nas vizinhanças e aprender as artes das prendas domésticas, bordado, crochê, tricô e cuidar da casa.  Participar de um movimento organizado como as Filhas de Maria era uma forma de integrar-se a sociedade feminina, da mesma faixa etária para troca de experiências, que experiências? O que almejavam estas senhoritas? Formar uma família? Repetir a sina de suas mães? Me dá vontade de chorar quando penso nisso…

O que tem de diferente uma moça que carrega o estandarte? Ela pode estar reproduzindo o padrão, mas acho que não, ela carrega o estandarte porque lidera, ela lidera porque quer algo diferente, ela quer algo diferente porque quer mudar. Não importa o que e como, mas é preciso mudar, evoluir, dar o melhor de si para agregar valores. Que valores? Os valores de uma moça que sabe se ajoelhar e reconhecer sua pequenez diante do criador, que carrega o estandarte da liderança e não esquece a humildade. Que resplandece a beleza interior como seu vestido branco. Que traz a determinação dos Zanon no sangue. Que sabe o que quer, que é positiva, que sabe se impor na hora certa, que carrega consigo os valores sociais, religiosos e familiares de seu tempo, mas que sobretudo quer ir além…

Porque isto encantou o Toni? Tão diferente, extrovertido, um tanto inconsequente, trabalhador habilidoso e criativo, mas segundo alguns um ‘bom vivant’, religioso também, mas acima de tudo comprometido com a parte mais festiva da religiosidade da época. Ao escolher uma mãe para seus filhos ele queria não alguém igual a si, mas aquela moça que acrescentaria valores e qualidades à família. “Mamma mia” matei a charada. A mãe é aquela que por ser completa e diferente acrescenta qualidades, valores, habilidades e criatividade a nova família. É na soma que se constitui a evolução.

Assim cada Piovesan soube ao longo do tempo acrescentar qualidades à família, vejamos pela ordem dos acréscimos. A tia Pierina, minha madrinha, creio que foi escolhida pela qualidade dos Rossato que é a persistência ao mesmo tempo que ela representa a mulher forte também trazia a bondade e uma forma de conduzir a família mais leve que o tio, ele era o mais sério da família, segundo minha avaliação. E segundo as crianças muito severo em seus castigos. Já a segunda foi a tia Bazilides, minha mãe. Desde o primeiro encontro foram seis anos cultivando um namoro a distância, no tempo que a unica forma de comunicação eram as cartas. Acho que um dos motivos da escolha foi esta intelectualidade que acompanhava as famílias Trentin, uma curiosidade que completava admiravelmente o lado prático do pai. Mas outras qualidades complementares constituíram a família, ele falava com os animais, ela com as plantas, ela não sabia dizer não, ela impunha os limites, ele gostava de cantar e fazer amigos, ela também. A tia Clementina a inocência em pessoa, jamais conheci alguém mais transparente e dedicada, com certeza o complemento perfeito para o tio Pio, até acho que adotei ela como mãe depois do falecimento da minha. E finalmente a tia Alzira, bem! Esta é a eterna tia, aquela que sabe ser forte quando é necessário, ser mãe, ser amiga, ser confidente, enfim, olhando como sobrinho ela sempre foi a casa enquanto o tio era o caminho.

Assim, depois desta breve análise podemos compreender um pouco como a família Piovesan foi enriquecendo a própria cultura ao buscar nas mães as qualidades que desejavam ou que complementavam a cultura familiar.

No verão de 1991, minha família, Catia, Lucas, Licéia e Luciana com a mãe e o pai tratando as ovelhas.

 

  • Como é dia das mães me permitam um aparte, vou falar da minha. Ela sempre nos estimulou a leitura, talvez por isso eu hoje seja jornalista, trazia de família o gosto pelas letras, isto pode ser visto nas cartas ao namorado, que tenho e guardo com carinho, onde pode-se ler nas entrelinhas a paciência, a fidelidade, o amor com que ela esperou pelo dia de seu casamento. Sonhou e planejou por seis anos a sua futura família. Ela trouxe a reflexão, a filosofia, o conhecimento teórico, o planejamento futuro enquanto o pai trouxe a prática, o dia a dia, a experiência. Por outro lado muitas coisas eles tinham em comum, amavam a música, o canto, tinham um milhão de amigos, estavam sempre prontos a ajudar e não se conformavam com as injustiças sociais o que fez deles revolucionários, muitas vezes se colocaram contra a “ordem” estabelecida. Até acho que foi ela que despertou em mim o espírito crítico…

O soque do Antoninho Frikes

Passando um pouco do erval, uma trilha a direita costeava a cerca do potreiro e depois serpenteava por entre as touceiras de branquilhos chegando em alguns trechos a ser quase um túnel verde que desembocava finalmente numa clareira de gramado. Ao norte cercada de branquilhos e ao sul demarcada pela curva do arroio do Papagaio, cortada ao meio por uma valeta que trazia a água em curva de nível do passo até a bica da roda d’água do soque de erva mate do Antoninho. Qual a razão para fazer um soque de erva escondido?

Bella Famiglia - Graças a kombi do Antoninho pudemos fazer uma visita ao nono e a nona em Nova Palma.

Bella Famiglia – Graças a kombi do Antoninho pudemos fazer uma visita ao nono e a nona em Nova Palma.

Em plena época de ditadura qualquer atividade econômica era controlada rigorosamente e o que não estivesse exatamente dentro do que era preconizado pelos detentores do poder era passível de punição. O tio Luis tinha na época o moinho da vila mas não podia moer trigo, nem no modelo que era usado até então em que o agricultor levava o trigo e ele moia ficando com uma porcentagem. Acho que era até proibido moer o trigo em casa no pilão. Tinha que mandar tudo pra cooperativa e deixar lá reservado uma quantidade de farinha que podia ser retirada mensalmente. Se não me engano esta farinha não podia ser vendida.

– Bem! Deixa pra lá! Isto era coisa da ditadura e eu queria falar do soque do Antoninho.

– O Antoninho Frikes Vaz tinha um armazém, destes tipo boteco mesmo, em frente ao campo de futebol, hoje a praça da igreja da Vila Trentin, também tinha um bando de filhos pequenos, bocas pra dar comida, logo tinha que se virar para conseguir sustentar a família. Se virar em época de vacas magras significava ter que diversificar as atividades então ele comprou uma kombi velha e começou a fazer uma linha de transporte da vila até Palmeira para levar e trazer passageiros e mercadorias, era lá pelos anos setenta, se não me engano. Só que esta atividade era considerada ilegal mas ninguém denunciava porque o povo dependia dele pra se locomover, mas nem assim  ele estava conseguindo por comida nas bocas das crianças em quantidade suficiente. Foi aí que teve a ideia de montar um soque de erva mate. Esta atividade além de ilegal também tinha concorrentes que poderiam denunciá-lo, por isso tinha que ser feita com a maior discrição possível.

Não sei como ele chegou até meu pai, mas com certeza chegou no lugar certo pois o pai sempre teve um quê de revolucionário, daí até fazer alguma coisa que contrariasse o regime era um passo. Como já falei antes, na nossa terra tinha o lugar ideal, uma clareira na beira do arroio, toda cercada de mato, o acesso se poderia fazer pelo lado da casa, como isto chamaria a atenção, a opção dos dois foi fazer uma trilha que desembocava no travessão, dentro da picada de mato. Depois, a estrada que ia até o soque, era um verdadeiro labirinto aproveitando as trilhas do gado por entre os branquilhos espinhentos.

A água não era muita, mas o desnível até o pondo da roda era de uns três metros e oitenta centímetros, o que segundo cálculos teóricos do Tio Ângelo, o fazedor de rodas d’água, ia dar uns três cavalos de força, mais que suficiente para movimentar seis mãos de pilão. os dados de cálculo ele obteve teoricamente do tio pois ninguém podia ficar sabendo da indústria, na época tinha espião até dentro da própria família. Não seria umas grande indústria mas daria para abastecer o armazém com erva própria e mais barata o que aumentava a margem de lucro, ainda mais que alguns clientes da Palmeira começavam a aumentar o volume de encomendas, já que era boa e mais barata.

O empreendedor comprava a erva dos produtores que seria beneficiada, seca e moída, em algum soque autorizado e depois seria revendida no armazém. É claro que uma parte seguia o caminho legal, outra parte ele secava em algum barbaquá escondido e moia no dito soque, isto aumentava enormemente a margem de lucro, hoje diríamos aumentava o valor agregado.

Até hoje não sei bem quais as tratativas que fez com o tio Lino, o que lembro é que um dia apareceu lá em casa com a ideia e pronto para começar a obra. Primeiro tinha que desviar a valeta da roda de bombeamento de água por um canal, valeta, mais acima e ir abrindo a mesma té a clareira onde se somavam mais umas corredeiras e uma cachoeirinha dando os três metros e pouco que precisava de “caimento”. Feito isso tinha que preparar a “cava” para a roda e aplainar o terreno para a instalação do cocho de moagem e das cavadeiras. E por cima de tido um galpãozinho de proteção. No dia que foi liberada a água na valeta nova foi uma festa, formou uma bela cachoeira na bica, só que deu um problema, com a água desviada não sobrou quantidade suficiente para bombear água da fonte pra casa. Mais uma obra se fez necessária, reforçar a barragem de contenção, açude, para aproveitar melhor a água do arroio.

Depois foi montada a roda d’água, o soque, o galpão e a indústria começou a produzir. Ele vinha de noite trazer erva para socar e carregar a erva, pois o trabalho não podia ser conhecido por terceiros. O soque funcionava o dia inteiro e no cair da noite chegava o Antoninho para descarregar a erva moída e reabastecer o cocho.

Terminaram as minhas férias e quando cheguei em casa novamente não tinha mais soque, até hoje não sei o que aconteceu…

… mas o bom de tudo isso é que ale ficou devendo favor pro pai e nas outras férias fizemos uma viagem em família par Nova Palma, na kombi do Antoninho, é claro.

Acho que a viagem dá outra história qualquer dia…

 

“Dolci in scarcella” e a netinha

A tradição de carregar doces no bolso já é bastante conhecida na família, principalmente pelas crianças, era uma forma de agradar que o nono nunca negligenciou.

O casal viajante, Elizabeth e Antônio Piovesan

O casal viajante, Elizabeth e Antônio Piovesan

O episódio de hoje já é dos anos 70, a Leda já estava com uns cinco aninhos, numa das raras viagens que o nono e a nona fizeram para Jaboticaba. Eu disse rara porque a nona Elisabeth raramente viajava, lembro de apenas uma visita dela. Nesta em particular eu não estava em casa eles vieram para fazer uma espécie de férias em Jaboticaba onde moravam os filhos Lino e Achiles e os irmãos dela o tio Atílio e tio Aurélio Zanon. Eles ficaram quase uma semana e como o Toni não ficava muito tempo longe de um traguinho teve que achar um método de levar o ingrediente consigo, só que tinha um probleminha, a nona não gostava muito deste hábito, até porque tinha uma outra história, que será contada oportunamente, de ajudá-lo a atravessar a pinguela quando voltava da missa devidamente batizado. Como ele iria ficar alguns dias deslocado de seu ambiente natural, e evidentemente do bar do Alessio, resolveu utilizar o método largamente conhecido nos filmes de faroeste de levar o combustível num vidro chato, organicamente curvado para se acomodar ao bolso sem despertar suspeita, um vidro de Biotônico Fontoura.
Na visita ao Lino enquanto a nona, a nora Bazilides e o Lino tomavam chimarrão na cozinha ele saiu dar uma volta para “ver as plantas”, aliás um hábito que eu também tenho, só que não era exatamente para ver as árvores, quando chegou aos fundos da casa levou a mão discretamente ao peito, pelo lado de dentro do casaco e sacou a arma, digo o vidro, e sorveu um belo trago.

A netinha inocente

A netinha inocente

Quando abaixou os olhos viu a netinha Leda, que brincava na terra. Aí bateu o pânico, tomar bebida alcoólica escondido da esposa, e pior, na frente de uma criança, e se ela falasse… por via das dúvidas era preciso fazer algo.
Ha! “i dolci” – lembrou das balas que estavam no bolso. Tirou um belo punhado e ofereceu para ela, mas com uma condição, que não falasse e a “cachacetta”.
A Leda que não sabia do que se tratava achou um bom negócio aceitar as balas para ficar quieta, até porque nem sabia de que se tratava aquilo que ele havia bebido.
Muitos anos depois, até porque nos outros protagonistas já faleceram, a menina resolveu confessar a travessura do nono. Agora ela sabe que não era exatamente Biotônico que o vô tomava escondido…

Excesso de velocidade…

A velocidade sempre fascinou a humanidade, desde a época das cavernas os humanos tentam descobrir métodos de se locomover mais rápido, naquele tempo era compreensível pois, não raro, tinham que fugir de algum predador muito mais veloz que eles. Escapar de um predador produzia um prazer indizível, equivalia a nascer de novo, por isso a corrida foi se incorporando ao fazer humano como fonte de adrenalina e consequentemente de prazer. Isso explica porque naquele 19 de maio de 1948 os irmãos Achiles e Abel disputavam uma carreira. As carreiras eram comparáveis aos atuais rachas feitos entre jovens atualmente. Como naquele tempo só existiam cavalos por lá é natural que as corridas fossem nesta modalidade. Uma das diversões preferidas da gurizada, quando tinha apenas um cavalo a corrida era feita da seguinte forma: dividia-se a cancha em duas metades e o corredor a pé começava na metade enquanto o cavaleiro percorria o trecho todo. Diversas modalidades eram usadas para este tipo de competição, a mais comum era a cancha reta, que em geral apresentava alguns problemas porque não tinha grandes retas nas estradas e caminhos. Por isso a carreira terminava na reta, mas o espaço para desaceleração ficava numa curva.

Os Piovesans: Thereza, Odila, Clementina, Lino, Pio, Inacio, Maria e Abel cantando. note-se que o Abel ao movimentar-se evidencia a perna quebrada.
Como nos rachas, as curvas em alta velocidade sempre representaram perigo, mesmo nas corridas de cavalos, e por isso sempre foram propícias para acidentes.
– Lá vêm os dois irmãos cavaleiros em alta velocidade, passo a passo, paleta a paleta, numa corrida emocionante, se aproximam da linha final, praticamente, emparelhados, e… cruzam a linha de chegada!
Os cavalos ainda correm um pouco na curva enquanto os cavaleiros praticam as manobras de desaceleração, o cavalo do Abel resvala e lá se vão os dois para o chão, não houve vencedores. O Abel saiu com uma perna quebrada e o Achiles teve que teve que carregar o mano para casa.
O que tinha de mais avançado na época para ossos quebrados era a prática exercida pelo Domingos Casarin, tradicional arrumador de ossos de Nova Palma, que procedeu a entalação da perna, após ter posto os ossos no lugar. Para imobilizar um membro quebrado era feito a entalação usando preferencialmente talas de taquara de 25 a 30 centímetros de comprimento por três ou quatro de largura, enroladas em um pano macio, em geral tiras de um lençol velho. As talas eram colocadas ao redor da perna ou braço quebrado e fixadas com mais tiras de pano, coladas com breu. Este tipo de imobilização era muito eficiente e fácil de fazer com os recursos limitados que havia naquela época. Fico a imaginar o que foi a arrumação do osso sem anestesia, embora seu Domingos tivesse bastante prática, com certeza não foi brincadeira.
Quem já quebrou um osso sabe muito bem que a dor que se segue nos dias subsequentes é algo capaz de fazer qualquer um delirar. E é no pós-quebradura que a história toma rumos diferentes, existem duas versões explicativas para o ocorrido. A primeira dá conta de que uma noite deu um temporal e o Abel tendo levado um susto sem perceber mexeu a perna colando fora do lugar. Mais tarde, quando foram tiradas as ataduras e talas, percebeu que sua perna estava alguns centímetros mais curta, o que mais tarde lhe deu problemas de coluna.
Mas existe outra versão, a do irmão Lino. Segundo o ele o Abel era sonâmbulo, chegando muitas vezes a levantar a noite, em noite de lua, e encangar os bois e ir lavrar dormindo. Falaremos disso noutra oportunidade. Estando ele convalescendo, após a fratura da perna ele ficou vários dias na cama, teve febre e era mantido acordado o dia todo para poder dormir quando o cansaço e a dor tomassem conta dele à noite. Depois do segundo ou terceiro dia começava a aliviar a dor e ele conseguia descansar melhor durante o dia, numa noite, ainda cedo, quando a família se preparava para jantar alguém viu o Abel passar em direção à estrebaria caminhando com extrema dificuldade e o nono gritou:
– Cossa sito drio fare? (O que você está fazendo?)
Ao que o Abel respondeu tranquilamente:
– Vao tchapare i boi par arare. (Vou pegar os bois para lavrar)
Foi um corre-corre saíram todos para fazê-lo voltar para a cama.
Apesar do serviço do arrumador de ossos ter sido feito com esmero, os ossos que estavam quebrados na diagonal sofreram um deslizamento que acabou fazendo com que a perna ficasse mais curta.

Festa surpresa de aniversário

aniversário surpresa

Foto do meu casamento, no 51º aniversário de meu pai, 39 anos depois da festa aqui narrada.

Hoje meu pai faria 86 anos, hoje também celebro meus 35 anos de casamento, talvez meu casamento tenha sido a festa surpresa para ele quando fez 41 anos. Ele sempre gostou de festas surpresa e contava muitas histórias destas festas que sempre eram muito divertidas, e enfeitadas como ele gostava de contar. Dentre as muitas histórias de festas surpresa de aniversário, esta era uma das que o pai mais gostava, a festa surpresa de 41 anos do nono Toni, oportunamente contarei outras.

Foi no ano de 1940, o pai comemorava 12 anos e o nono Toni 41, segundo a tradição da comunidade foi planejada uma festa surpresa para o Toni. Já tinham sido roubadas as galinhas na semana anterior e esperava-se que o vinho fosse roubado no dia, ou pelo menos os aniversariantes contribuíssem com ele. Foi assim que a vizinhança começou os preparativos para a festa, assaram os frangos na casa do Afonso Vestena, outros fizeram as cucas, pães, grustolis e outras iguarias e combinaram chegar à festa com tudo pronto, a nona faria uma grande polenta e prepararia uma salada.

Para fazer esta combinação decidiram mandar recado pelo Pio. Os visitantes entregariam os ingredientes e comidas da festa para ele que estaria esperando na saída da pinguela e levaria para dentro discretamente pelos fundos. Os convidados chegariam na casa de mãos abanando como quem veio para uma rodada de cinquilho e fariam de conta que nem lembravam do aniversário e nenhum sabia que o outro também viria. Somente falariam do aniversário quando todos tivessem chegado. Neste meio tempo, enquanto os visitantes iam se acomodando na sala para o jogo, o Pio e a nona, que a esta altura já estaria fazendo a polenta, organizariam as comidas.

Só que aconteceu um problema, o recado que deveria ser dado para o Pio foi dado para o Lino, nenhum dos organizadores se deu conta que ele também era aniversariante. Ele, muito pucha saco do pai contou tudo para ele e os dois passaram a planejar a surpresa para a festa.

Primeiro tinham que atrasar a nona o quanto pudessem, para isso ficaram na lavoura até bastante tarde. Quando chegaram em casa o nono foi para a cozinha e ficou lá, sentado na caixa de lenha, o Lino foi para a saída do carreiro da pinguela para pegar as comidas e levar para casa neste caso esconder. Tudo pronto e ficaram a postos, a nona não sabia de nada e começou a fazer a janta normalmente, os outros ficaram pra cá e pra lá como sempre faziam antes da janta, o Lino sumiu, quanto perguntaram por ele o nono disse que tinha ido tomar banho no rio, ninguém questionou porque sabiam que ele ia mesmo quando era frio.
Quando começou escurecer começaram a chegar os convidados os Vestena, o Angelim Girardello, o Guerino Rossato os cunhados Zanon… Cada um que chegava, o Lino do meio do mato cochichava:

“dame qua cossa te gue aportá”(me dê o que você trouxe), e assim um por um foram chegando e dando para o Lino o que tinham trazido para a festa. Tudo foi guardado no galpãozinho onde o nono guardava o vinho e as graspas perto do rio.
Na cozinha o nono ia recebendo os convidados e fazendo questão que ficassem na cozinha, que estava mais quentinho, tomando chimarrão, e “zô mato” (dá-lhe chimarrão). Chegou a comentar que estava esperando eles para depois da janta para um carteado. Passava algum tempo e chegava mais um, e mais um, e a nona começou a ficar preocupada porque não estava preparada para dar janta para toda aquela gente. Quando já tinham chegado uns sete ou oito eles começaram a insistir que era melhor irem para a sala, pois lá tinha o banco, e a mesa maior. Olhavam para a nona e para o Pio e nenhum dos dois parecia saber de nada, ninguém falava nada e tentavam se comunicar por gestos. O nono fazia de conta que não sabia de nada e finalmente concordou em ir para a sala para deixar a nona fazer a janta mais sossegada. Foram para a sala, a esta altura a situação já começava ficar tensa, a piazada já estava dentro de casa e ninguém percebeu que o Lino chegara mais tarde. Foi aí que o nono pediu para ele buscar vinho para a turma, ele pegou um bule e lá se foi, como estava demorando o nono saiu para ver o que tinha acontecido, na verdade isso estava combinado, era para saber como estavam as coisas e se ele tinha feito tudo direitinho.
Neste meio tempo a turma foi para a cozinha pra saber se tava tudo pronto e descobriram que não tinha nada, a não ser a grande polenta que a nona fez. O nono voltou falando alto com o Lino para que eles tivessem tempo para voltar para a sala. Foi aí que ele resolveu convidar todos para jantar: polenta, radicci e vinho, e “qualque toquetto de salado” (algum pedaço de salame), era tudo o que tinha. O Toni estava muito a vontade enquanto a nona estava envergonhada com a situação e mais ainda os convidados, que não sabiam o que tinha acontecido.
Quando a mesa estava servida e todos ao redor com cara de decepção e não entendendo o que estava acontecendo, ele disse que ia buscar mais vinho e saiu. Algum tempo depois voltaram ele e o aniversariante com as galinhas assadas, cucas, pães, grustolis e outros quitutes que os visitantes trouxeram. Aí eles anunciaram que era uma festa surpresa para ele e o Lino que estavam de aniversário.
Parece que os dois tinham um grau de cumplicidade bem grande principalmente quando se tratava de fazer alguma arte. O pai contava que se divertiram bastante naquela noite e ficaram até a madrugada festejando e cantando.

Algumas outras histórias de festas de aniversário ainda serão contadas…

Como se faz um “torchio” sem torno

Moenda ou "torchio" feito pelo mestre carpinteiro Antônio Piovesan.

Moenda ou “torchio” feito pelo mestre carpinteiro Antônio Piovesan.

“Torchio”é a palavra em italiano que designa moenda, aqui no Brasil também é usada a grafia “torccio”. Este apelido carinhoso foi dado ao meu avô por ele ser um exímio fabricante deste tipo de moendas ou prensas destinadas a extrair o suco da cana, a garapa, ou guarapa como é mais conhecida no sul do Brasil.
Como trabalho com madeira, tentei ficar imaginando como meu avô torneava as maças dos torchios sem ter um grande torno, dispondo apenas de ferramentas rudimentares, foi aí que apelei para duas pessoas que trabalhavam com madeira, também com ferramentas precárias para tentar entender o processo. O tio Ângelo Chierentin, construtor de rodas d’agua de madeira e o seu Genésio Bortoluzzi, que também fazia torchios, mas com tecnologia mais avançada. Eles me ajudaram a compreender como o torneado ficava perfeito, feito tudo a base de machadinha, serrote, enxó, formão, plaina garlopa e outras ferramentas simples. Como os dentes da engrenagem eram feitos um a um e encaixados na maça de madeira, como eram calculados para dar certo, para que a velocidade das maças entre si fosse constante e não houvesse deslizamento. Algum tempo depois pude confirmar passo a passo a tecnologia com a tia Thereza, que quando jovem ajudou-o a fazer muitos torchios.
A escolha da madeira
Primeiro cortavam três pedaços de tora, preferencialmente de angico, pela qualidade da madeira. A primeira, mais grossa, e mais comprida, para sobrar uma ponta para o cabeçalho, as outras duas apenas do comprimento da maça mais o eixo. Fazer o torneado começava sempre pela marcação do centro da tora de madeira que originaria a maça, e com um compasso rudimentar marcava a grossura do eixo. A partir daí marcava o comprimento que deveria ter o eixo para encaixar bem no mancal e então começava a serrar em torno tirando com o formão a madeira até chegar no risco que definia o eixo. Este trabalho era o que exigia a maior precisão e a conferência do esquadro a cada momento.
O serviço de torno
Esculpidas as pontas dos eixos tudo ficava mais simples, mas não menos trabalhoso, o bloco de madeira era colocado apoiado pelas pontas de eixos em duas forquilhas cravadas no chão que serviam de mancal, aí começava o serviço de torno. Girando manualmente a tora e desbastando com a plaina até ficar perfeitamente torneada. A definição do diâmetro da maça não era crítico, no entanto a circunferência devia ter um tamanho múltiplo do passo dos dentes, este era o segredo para não dar errado. Esta circunferência era definida geralmente em polegadas, já que as medidas das ferramentas na época também o eram, se o formão era de uma polegada, a soma do dente e o vão deveria ser de duas polegadas, assim a circunferência deveria ser definida com um número par de polegadas. Em linguagem de engenheiro, a circunferência definia a linha média da engrenagem.
O próximo passo era definir o comprimento, a largura dos dentes e a posição na maça. Em geral se seguia um padrão ao redor de três polegadas do topo da maça, dentes de duas polegadas de largura e duas de comprimento, com passo de duas polegadas. O passo da engrenagem é que definia a circunferência, esta podia variar de acordo com o diâmetro da tora, desde que fechasse com o passo, em alguns casos o torchio tinha três maças de diâmetros diferentes. Definida a posição dos dentes da engrenagem era torneado um rebaixo na maça com a profundidade da metade do comprimento dos dentes. O serviço de torno estava acabado.
A engrenagem
No rebaixo feito para a engrenagem era feita a marcação dos dentes e com formão eram feitos furos retangulares para encaixar os mesmos. Os dentes eram feitos um a um, a partir de um sarrafo de guajuvira, por ser uma madeira que apresenta grande resistência e flexibilidade, com o tamanho exato para encaixar sem soltar dos furos, os dentes eram encaixados nos furos e depois cortados para que ficassem com o comprimento certo, então era feito o acabamento.
Os mancais e a base

Nesta foto de 1978 um dos últimos torchios feito por ele ainda em funcionamento na casa da tia Eulália.

Nesta foto de 1978 um dos últimos torchios feito por ele ainda em funcionamento na casa da tia Eulália.

Na base, em geral feita de uma peça única de madeira com a largura um pouco maior que a maça maior, eram feitos os furos, não passantes, que serviriam de mancal inferior para as maças. Também na base eram feitos sulcos para recolher a garapa que terminavam numa bica onde era pendurado o balde. O mancal superior, muitas vezes era feito em duas metades, principalmente quando havia escassez de madeira grande, ou para facilitar a montagem. Nas pontas das bases, superior e inferior, eram feitos furos quadrados para encaixar os postes de sustentação. Na ponta de eixo superior da maça maior e central, que ficava mais comprido era feito um rebaixo retangular onde se encaixava o cabeçalho, um galho torto que era furado no ponto de equilíbrio, ficando a ponta mais fina e mais longa voltada para baixo para facilitar o engate dos bois que fariam a tração.

Ao ver um destes engenhos atualmente jamais imaginamos quanto esforço, persistência, paciência e tempo eram gastos neste trabalho.

Daí podemos concluir que chamá-lo de “Toni Torchio” era o equivalente a chamar de paciencioso e persistente, qualidade que certamente passou às gerações futuras, tem uns tentando escrever um livro, haja paciência e persistência pra isso.

 

“Solo canucchi”

A primeira história que sugere o apelido carinhoso de “Toni Taquara” é a de “Ver as horas no milharal” outra história que reporta ao apelido, tem suas raízes num galpãozinho que tinha atrás da casa perto do rio, onde o nono guardava suas cachacinhas e “graspas” preferidas. Aqui vai a primeira parte…
Muito religioso, o seu Antônio Piovesan costumava receber periodicamente os padres em sua casa, quando não era o vigário da Nova Palma, era algum padre Palotino, muitas vezes o padre e seus amigos, o bispo ou alguma outra autoridade religiosa que vinha para a paróquia, enfim, sempre que o vigário recebia alguma visita importante era praxe fazer uma visitinha ao Toni, que sempre se destacou como homem de fé, eu tinha digitado fá, aí me dei conta que poderia ser mesmo fá, sol, lá ou qualquer outra nota. Falando em nota me lembrei do valor, enfim, ter um paroquiano como ele não tinha preço para qualquer vigário que passou pela paróquia da Santíssima Trindade de Nova Palma. Está explicado, visita-lo era uma espécie de coroação de uma visita religiosa à paróquia. Era visitar um exemplo de cristão que fazia tudo com tanto amor capaz de consagrar qualquer ato cotidiano, por mais banal que fosse, até mesmo um jogo de chinquilho com os amigos ou padres num final de tarde de domingo.

Não sei bem precisar as datas, pois ouvi esta história de meu pai, o Lino.

Num domingo à tarde, foi num domingo que havia crisma na paróquia, estando o bispo muito ocupado designou para a missão, se não me engano, o Monsenhor Vitor Batistela, recém sagrado monsenhor. Na missa da Crisma tudo ocorreu com a maior naturalidade, como tudo o que acontecia na paróquia, a missa, a cerimônia da crisma, o canto… ah o canto, para os paroquianos e para o vigário tudo era perfeitamente normal, como acontecia todo o domingo, fosse festivo ou não, aliás em Nova Palma todo o domingo é festivo, por isso tudo foi normal. Menos para o monsenhor, nada pareceu normal, a afinação do coro, com a beleza das vozes, enfim, tudo parecia fruto de muito ensaio e preparação, tudo parecia perfeito. No final da Missa ele não pode deixar de fazer elogios à fé e ao fervor dos paroquianos e, é claro, dando um destaque especial ao coro, foi então que o vigário sugeriu uma visita ao regente do coro após o meio-dia. Não precisou nem formalizar o convite que foi aceito imediatamente tanto pelo monsenhor como pelo seu séquito.
Depois do almoço, respeitada a hora da sesta, todos se dirigiram à casa do Toni, que já estava esperando com um bom vinho, cartas para um chinquilho e alguns vizinhos para companhia, o Bertoldo, o Dalla-Nora, e o cunhado Aurélio Zanon. Uma visita destas era uma oportunidade para comemorar, afinal não é todo dia que vem um bispo, ou quase, na casada gente. Depois de um copo de vinho e algumas rodadas de chinquilho, o tio Aurélio Zanon começou a falara das habilidades do cunhado na preparação de licores especiais. Tudo destilado num alambique rudimentar feito com o panelão, uma tampa de zinco e um cano de cobre, mas com sabores indescritíveis, claro, eram feitos por um artista das bebidas destiladas, nada mais nada menos que o cunhado, o Toni.
A esta altura o “vesco”, que já tinha visto o que o “Toni” era capaz de fazer no coral, a maestria com que dirigia, a beleza da voz, estava convencido que realmente estava diante de um cristão que buscava a perfeição, e pelo efeito do vinho não pode deixar de sugerir que gostaria de conhecer pessoalmente a perfeição de tais licores. O “Toni”, já com o ego bem massageado pelo padre, após a missa, pelo cunhado e agora pelo monsenhor, resolveu provar, na prática, suas habilidades e brindar as visitas com uma “graspa” especial, realmente muito especial, guardada num garrafão lá no fundo, bem no fundo do galpãozinho.
Pediu licença, e saiu rumo a arca do tesouro, o galpãozinho. Retirou com cuidado vários garrafões da frente e pegou aquele que guardava o tesouro, “quela graspeta speciale”. Aí veio a primeira surpresa, o “garrafonetto” estava muito leve, puxou-o para si e veio a segunda surpresa “il gue gera pien de canucchi” e “solo um poquetin de graspa al fondo”. A esta altura nada mais havia que fazer, pegou uma outra, não tão perfeita e serviu para as visitas…
À noite, na hora da janta, comentou com a família o ocorrido.
Porque o garrafão estava cheio de “canucchi”? – é a próxima história do Lino.

Graspa. – Bebida destilada a partir das cascas da uva depois de separado o vinho.

Garrafonetto. – Garrafãozinho, ou garrafão precioso.

Vesco. – Bispo ou alguém que tem sua autoridade.

Canucchi. – Canudos de taquara utilizados para tomar água numa fonte ou riacho. ( O Leonildo conhece uma história bem interessante sobre isto)

Il cigro de la vecchia Gusta Bertola

Algumas rotinas são diárias outras semanais, mensais ou até anuais, mas são sempre rotinas, ritos que se repetem indefinidamente sempre da mesma maneira. A “messa dominicale” da velha “Gusta Bertola” não era diferente, assim como os Piovesan de Toni, sempre iam para a primeira missa, a das oito horas, a vecchia Gusta Bertola ia para a segunda, as nove, ficava mais cômodo, não precisava levantar tão cedo, pois ela morava passando o Toni uns quatro quilômetros pro lado de São João. Depois quando ela voltava, passando o passo do Soturno, dava uma chegadinha na casa do Toni, que a esta altura já estava bebendo um copo de vinho e fumando um palheiro. Sempre tinha assunto para conversar e assim ela ficava pelo menos uma hora de conversa com o vizinho, e amigo do finado marido, mas não descia do cavalo, que ficava pisoteando e dando voltinhas.
Como isto já era uma rotina o Toni voltava da missa e arrastava uma cadeira para o terreiro e ficava na sombra da laranjeira esperando a amiga para conversar, fumando um palheiro e bebericando vinho, enquanto a nona preparava o almoço (il dinnare). A Ferruchia não tomava vinho, pelo menos aí não, pois acho que já era adepta do “se beber não dirija”. Chegava lá pelas 10 e meia e ficava mais ou menos uma hora conversando sobre os bichos, a plantação, o tempo e qualquer outro assunto que aparecesse até que lá pelas onze e meia a gurizada começava se aproximar da cozinha para almoçar. Então o nono a convidava para almoçar e ela agradecia e dizia que tinha que ir para casa que o almoço dela estava esperando, mas… se virava para o Lino, piazote de 14 ou 15 anos na época e pedia:
– Ció Lino fa-me um cigro?
O Lino pegava a brítola do pai, um pedaço de fumo e uma palha e fazia um cigarro de palha magistralmente. Exatamente como ela gostava, ia até a cozinha, acendia o cigarro no fogolaro, dava umas tragadas e levava para a Gusta Bertola, que agradecia e saia galopando o cavalo. Era uma rotina, e bem que o Lino gostava, pois era a oportunidade de dar umas tragadas no cigarro.
Imagine esta cena se repetindo um ano, dois ou mais. Podia combinar com a Gusta Bertola e talvez com o Toni, mas com o Lino eu duvido muito, no entanto a cena se repetia e se repetia… até que um dia…
O Toni arrastou a cadeira para a sombra, preparou seu palheiro, pegou o copo de vinho e ficou esperando. Chegou a Gusta Bertola, ficou conversando um tempão, foi convidada para almoçar, agradeceu e começou a procurar pelo Lino que não estava aí para fazer o palheiro. Desta vez foi o Toni que gritou:
– Lino zé hora de fare el cigro dea Gusta Bertola!
O Lino apareceu pegou a palha, o fumo e a brítola e se foi lá para cozinha fazer o cigarro de palha, passados alguns minutos veio com o cigarro aceso, alcançou para a vizinha que saiu a galope para casa. Talvez o Toni e a Gusta Bertola não tenham se dado conta, mas a rotina estava quebrada.
Passado um minuto, talvez nem isso, a Gusta Bertola estava de volta, bestemando de uma forma que não combinava nem um pouco com alguém que voltava da missa. Com os cabelos sapecados e umas manchas pretas no rosto. O Lino tinha colocado umas “dieze o dodeze teste de fuminanti” (cabeças de palitos de fósforo) no palheiro… Acho que foi uma das poucas vezes que o Toni perdeu a paciência com ele. O que nunca consegui descobrir é se, e quanto ele apanhou do nono. Afinal os dois gostavam de aprontar “dispetti”.

Tem muito mais histórias envolvendo “il cigro dea Gusta Bertola” …

Toni de brague fate sú!

“É importante que se diga que todas as histórias e fatos aqui relatados são verdadeiras, verdadeiras joias do imaginário da família, mesmo que algumas tenham várias versões todas elas são verdadeiras, por isso, sempre que possível indicaremos a fonte.” (LiceoPiovesan)

A verdadeira história do Toni de brague fate sú.  Contada pelo Lino.

Muita gente já falou e com certeza vai falar ainda da devoção que o pai tinha pelo coro, aquela voz de baixo que fazia tremer as paredes. Quando ele cantava ninguém ficava indiferente. As Missas de Natal cantadas por ele, marcaram não só a minha vida, mas com certeza a de muitos. Parecia uma orquestra inteira de contrabaixos, dava um arrepio na gente quando ele abria o peito. Desta forma fica fácil de entender qual era a sua posição no coro ao lado esquerdo do altar, bem perto do celebrante ficavam as mulheres de primeira voz (sopranos) depois as de segunda voz (contraltos) depois os homens terceira voz (tenores) e finalmente a quarta voz (baixos) que ficavam mais visíveis para o público, pelo menos naquele tempo que tinha um estrado onde o coral ficava mais elevado, quase na altura do presbitério.

Também é preciso dizer que a igreja nunca foi um lugar de desfile de moda, pelo menos não na da Santissima Trindade, em Nova Palma, os fiéis iam para rezar e louvar a Deus. Ninguém reparava em como ou o que cada um vestia, mesmo assim, todos procuravam ir a missa com a melhor roupa que tinham, ‘la roba de andar messa’. Mesmo aqueles que andavam a semana toda descalços faziam questão de calçar sapatos aos domingos e dias santos para o momento de louvor a Deus, afinal para agradecer tantas bênçãos tudo tinha que ser o melhor. Inclusive o canto que tinha que ser impecável, perfeito.

Embora nem sempre e nem tudo fosse perfeito, como naquele ano que a enchente tinha levado rio abaixo a pinguela do Portela. Quem ia à missa a cavalo não tinha problemas, pois sempre usava o passo mesmo, mas quem ia a pé tinha que se submeter a uma cerimônia não muito agradável, tirar os sapatos e as meias, atravessar o passo do Portela e recolocar no outro lado. Isso não era diferente para a família Piovesan que morava no Bom Retiro. Era Natal e o pai, o Abel, a Eulália e a Odila, iam participar da missa do galo, cantada em latim a quatro vozes e tinham que ir a pé. Chegando ao passo do Portela tinha que tirar os sapatos, atravessar o rio e recolocar os sapatos no outro lado. As gurias tinham sofisticado a cerimônia levando uma toalha para enxugar os pés antes de recolocar os sapatos, mas o rio estava alto a água dava quase no joelho, para as mulheres não era grande problema, apesar de meio constrangedor, bastava puxar o vestido para cima e pronto. Para os homens era mais complicado, precisava enrolar bem para cima as calças, (far sú e brague) senão acabava molhando. O Toni fazia isto com maestria, pois gostava de ter os pés e pernas livres, estava acostumado a este ato, arregaçou as calças, atravessou o rio, secou os pés e recolocou os sapatos e lá se foram para a missa. Chegando quase em cima da hora tomaram suas posições no coro ao lado do altar e soltaram as vozes.

A celebração foi magnífica a perfeição e a harmonia da liturgia com o canto, contribuíram para a elevação dos corações em agradecimento ao criador que se fez humilde, frágil, pequeno e indefeso para o nosso bem. Tudo combinava magnificamente para mostrar o desapego, a humildade e a simplicidade do todo poderoso feito criança. A missa estava quase no fim e foi nesse momento que o pai se deu conta que estava na igreja, bem do lado do povo, com as calças arremangadas, ninguém tinha percebido este detalhe, e provavelmente não teriam notado se não fosse o nervosismo que tomou conta do cantor. Começou a esfregar uma perna na outra de um jeito estranho, se perder na música, mas conseguiu desarremangar as calças. Aliviado terminou sua tarefa de cantor com maestria, apesar de estar um tanto envergonhado com o ocorrido. Ele andava sempre com as calças arremangadas, mas na igreja, ele achava aquilo uma falta de respeito.

Terminada a missa, ele ainda meio sem graça foi se encontrar com os amigos no bar do Raimundo Aléssio, foi aí quer vários deles vieram lhe dizer que não tinham percebido nada até que ele começou com aquela inquietação. Chegaram a dizer que ninguém teria notado que ele tinha “e brague fate sú” se não fosse o nervosismo que demonstrou quando percebeu.

Ângelus

Numa família religiosa, e curiosamente uma família onde os homens eram bons praticantes, uma coisa que não podei faltar no fim do dia era um momento para agradecer a Deus pelas graças alcançadas naquele dia. Graça é tudo aquilo que ganhamos numa proporção maior que nosso esforço, numa família como esta as graças caem aos milhares de todos os lados, imagine uma brincadeira das crianças, as crianças crescendo, o milho nascendo, a uva amadurecendo, uma vaca que dá leite, impossível enumerar tudo o que acontece em um só dia que não seja gratificante, ou seja, cheio de graça. Logo nenhum só dia podia findar sem dar graças a Deus, é claro que também tinha que pedir perdão por aquilo que não estava muito bem dentro da regra, isto tudo fazia parte da cerimônia de encerramento do dia que tinha que ser gloriosa. Infelizmente não vivi estas tardes com o nono e os tios, mas acredito que não poderiam ser muito diferentes das que vivi na minha infância com minha família.

O autor é o do meio - ao fundo o ranchinho mencionado no texto e na música.

O autor é o do meio – ao fundo o ranchinho mencionado no texto e na música.

“A luz do sol logo depois do ocaso começa a escassear, é o crepúsculo, o dia recheado de atividade cede lugar ao recolhimento da noite que devagarinho cobre com seu manto toda a terra. Os pássaros nas árvores começam o burburinho da busca pelo abrigo, as galinhas se recolhem e os porcos… ah! Os porcos começam a gritar por comida, lá vai a gurizada com um balde de milho ou uma abobora picada, e eles se acalmam, a mama clama pela lenha para fazer a polenta enquanto acende o chiaro (lamparina), a gurizada termina rapidamente as brincadeira e faz as lidas do fim do dia. Como borboletas vão buscar a luz ou o calor do fogão de chapa. Enquanto a água da polenta esquenta, esquenta também a chaleira para fazer o mate, a gurizada lava os pés para dormir e põe os chinelos ou tamancos.

Os cachorros anunciam a aproximação do pai que volta da lavoura, o piá que está sentado na caixa de lenha já se coça, pois vai perder seu lugar perto do fogo, é o lugar do pai, que chega e resume rapidamente o trabalho do dia. A mãe já está com o chimarrão pronto que começa a ser servido. A partir de agora começa uma das mais emocionantes celebrações de que já participei.

O templo: uma casa muito simples sala e cozinha, a sala de assoalho rústico e a cozinha de chão batido. O altar do sacrifício: um fogão rústico com grandes toros de lenha alimentando um fogo crepitante, sobre o altar a chaleira do chimarrão e a panela da polenta aquecendo a água, talvez uma frigideira aquecendo a banha para uma fortaia. A luz do fogo e das lamparinas ilumina o ambiente. Sem distinção de ministros ou celebrantes, cada um tem consciência de sua função.  A mãe põe a farinha na panela da polenta enquanto o pai serve o chimarrão, os dois se revezam entre a cuia e a mescola, enquanto um toma seu chimarrão o outro mexe a polenta. As crianças menores encolhidas ao redor do fogão ouvem atentamente a liturgia da palavra a primeira parte da cerimônia: tempo reservado para a leitura de algum livro ou jornal, feita por um dos maiorzinhos sentado no banco com o texto sobre a mesa. Lá está a melhor lamparina uma que tem a chama fixa e grande. O leitor é quem preside esta parte da celebração, depois de uma ou duas páginas passa para outro, isto continua até a polenta e a fortaia ficarem prontas, ou um assunto lido exigir algum comentário ou discussão, onde o pai ou a mãe assumem o papel de ministro da palavra.

Pronta a ceia, interrompe-se a leitura e se prepara a mesa da comunhão. Às vezes o banquete é de apenas polenta, radicci, e um “toquetto de salado ou formaggio”, outras tem carne ou outros complementos. O pai agradece a Deus em nome da família os dons recebidos, ou se canta um agradecimento. É na hora da comunhão que os pais aproveitam para fazer uma revisão do dia dos filhos, o que fizeram? Como foi na escola? Aprontaram alguma arte? E assim por diante. Corpo e alma são alimentados nesta cerimônia simples e ao mesmo tempo completa.

Finda a comunhão os participantes se dispersam cada um segue um ritual específico: A mãe vai até o sechiaro para lavar os utensílios do culto, um dos filhos vai secar e guardar, os menores se ajoelham sobre o banco debruçando-se sobre a mesa o pai se ajoelha no chão e apoia os braços sobre a guarda duma cadeira, agora é ele quem preside. É hora de rezar o terço e a oração da noite. Normalmente as vozes das crianças começa vigorosa no início e finda, no final do terço, quase num murmúrio. Alguns até adormecidos…

Não importa como foi o dia agora já se pode dormir tranquilo, estivemos em dois ou mais reunidos em nome do Todo Poderoso, quem poderá nos impor medo?”

Mas o dia de graça muitas vezes ainda não findava aí, quando um dos menores terminava o terço dormindo nós dávamos uma cutucada para ver ele começar a responder: “Santa Maria ah ah nham nhmam aaa… e nos ríamos.

Nas noites de luar no verão a cerimônia era outra: a cantoria da qual falaremos oportunamente. Na tentativa de recordar e recontar esta cerimônia do Ângelus compus uma cantiga de ninar para minha sobrinha Isabela, filha da Leda, bisneta do Toni Torccio cuja letra está a seguir  e  a música num arranjo do Ernesto Piovesan, também bisneto do Toni numa gravação dele. Vale a pena ouvir.
Dorme Isabela baixar

Dorme Isabela

/: O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem. :/

1 –       Devagarinho a bicharada silencia.
A passarada se recolhe pros seus ninhos.
A criançada vai cessando a gritaria.
E pouco a pouco se achegando pro ranchinho.

/: O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem. :/

2 –       A Chaleira chia enquanto a mãe prepara o mate
O fogo arde no braseiro do fogão
Um piá resmunga e lá fora o cusco late
É o pai que chega com os bois no carretão.

/: O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem. :/

3 –       Depois a cuia vai passando mão em mão
Um livro conta história que nos encanta
No lusco fusco duma luz de lampião
Enquanto a mãe lá no fogão prepara a janta.

O sol se vai. A noite vem
Dorme Isabela, dorme meu bem.
O sol se foi. E é noite já
Dorme Isabela, pra descansar.

4 –       Depois da janta a criançada se acomoda
Pra cerimonia de encerrar aquele dia
Ajoelhados, debruçados sobre os bancos.
Rezando o terço na hora da Ave Maria.

/: O sol se foi. E é noite já
Dorme Isabela, pra descansar. :/