A história, diz-se que sempre é escrita do ponto de vista dos vencedores. Esta é a minha versão, da versão da Silvia, da versão do Caco, do episódio em que ele perdeu seu “canivete artesanal”. Portanto esta é uma versão dos perdedores…
Numa família religiosa como a dos Piovesan, muitas coisas, que os outros nem imaginam, podem e são consideradas sagradas, como por exemplo, a sesta do tio Abel. Um homem religioso que, alguns anos depois deste episódio, foi consagrado diácono. Ele sempre reservava uma horinha depois do almoço para uma sestazinha, tempo para recuperar o corpo e, com certeza, fazia bem para a alma também. Mesmo nos fins de semana quando o trabalho não era muito pesado a sesta era sagrada. Numa hora sagrada qualquer barulho, que pudesse atrapalhar o sacrossanto soninho, estava proibido. Não poderia ser diferente naquele sábado. A Maristela, a Bernadete e a tia Alzira faziam a limpeza semanal da casa com o maior cuidado para não tumultuar aquela hora sagrada.
Outra característica marcante na família é a capacidade inventiva e criativa, e isso é característica mais ou menos generalizada, como exemplo citarei a fabricação caseira de instrumentos e ferramentas, como o “canivete artesanal” do Caco. Tendo herdado a inventividade do avô, o Cláudio pôs em prática todos os conhecimentos de ferraria, marcenaria, física e química que conhecia e confeccionou um belíssimo canivete artesanal de múltiplas utilidades que o acompanhou por muito tempo. Outros objetos tradicionalmente feitos de forma artesanal eram os espetos de madeira, usados para assar carne. Estes, porém, de duração mais efêmera, eram usados uma única vez e depois descartados como espetos, continuando úteis para outras atividades, como por exemplo, briga de irmãos.
A família era sagrada e os seus laços venerados, no entanto, em alguns casos até podia haver pequenos desentendimentos comuns quando irmãos divergem opiniões ou preferências. Nada que a intervenção do pai, da mãe ou até mesmo de um irmão mais velho não possa resolver.

Tia Thereza, hoje religiosa conhecida pela sua dedicação a causa do bem, cercada dos filhos do tio Abel, mais ou menos na época da história narrada.
Voltemos ao nosso sábado: a mãe e as irmãs, tia Alzira, Bernadete e Maristela, estão fazendo limpeza no templo da sagrada família, a casa. O patriarca pratica a cerimonial sesta, enquanto os meninos, neste caso o grande inventor Cláudio Piovesan e seu irmão Inácio, brincam silenciosamente atrás da casa.
Segundo o Caco: para mostrar suas habilidades ameaçou, inocentemente, de brincadeira o irmão com o “canivete artesanal”, produto de seu suor e inventividade e foi mal interpretado.
Segundo o Inácio: ele ameaçou porque tinha ciúmes da desenvoltura e habilidades do irmão mais velho, ele no caso. De qualquer forma estava criado um desentendimento familiar. Na falta de uma irmã mais velha, da mãe ou do pai para mediar o conflito a solução era cada um mostrar suas habilidades, e foi o que o Inácio fez, mostrou sua habilidade de “lançamento de espeto em giro livre”, basicamente atirou contra o irmão portador do “canivete artesanal”, um espeto usado, girando em movimento livre horizontal.
Como a trajetória de espeto giratório é muito imprevisível o dito atingiu o pescoço do galo de terreiro e depois a parede. Galo de terreiro normalmente é um galo de muito boa qualidade e bonito, escolhido no quintal de um vizinho para melhoramento da qualidade genética do plantel de galináceos na propriedade. Como é um galo especial, chefe supremo da população galinácea local, porta uma bagagem genética diferenciada, canta pela manhã para acordar toda a população da propriedade e foi valorizado na compra ou troca com o vizinho, por isso, não tem preço.
Falávamos do lançamento de espeto que colidiu com o pescoço do galináceo e atingiu a parede, isto causou dois contratempos: o galináceo em questão caiu esticado no chão e o patriarca que dormia esticado na cama pôs-se de pé. Com isso foi quebrada uma regra sagrada, que é a de não acordar quem está sesteando.
Com o ruído provocado pelo espeto rotador contra a parede da casa, o tio Abel acordou mais que irritado, o que era raro acontecer com ele, e foi verificar o que acontecera. Indagou do ocorrido e ficou a par do lançamento de espeto e do motivo que ocasionou a ação.
Estendeu a mão para o Caco e disse com voz firme e decidida:
– Dame qua sto trapelo. Sem opção o artesão alcançou ao pai o “canivete artesanal” que foi usado para a prática do esporte de “lançamento de canivete ao mato” cujo objetivo é jogar o canivete de alguém, o mais distante possível, em direção a um lugar onde crescem árvores e arbustos, de forma que o proprietário, praticamente, não tenha chance de encontrá-lo. E assim foi. Segundo o proprietário, agora Sr. Cláudio Piovesan, passados mais de trinta anos ele ainda não o encontrou.
Voltando-se para o lançador de espeto, o Inácio, pouco mais que um pirralho, o pai foi mais enfático e prolixo:
– Pega este galo, ferve água e depena, depois limpa e prepara ele para o domingo, mas faça tudo isso sozinho, não quero saber de ninguém te ajudando. Soube matar, saiba preparar.
Sem outra opção o menino pegou o galo pelas pernas e foi-se em direção à cozinha, nesta altura as irmãs já festejavam aquele enorme galo assado para o domingo, coisa que estava um tanto rara naquela época de crise.
Ato número um, o Inácio foi acender o fogo para pôr a panela de água a ferver. A água fervente ajuda a soltar as penas, é uma prática bastante difundida entre os preparadores de aves. Um probleminha é que no fogão a lenha a água demora bastante para aquecer, e neste dia o tempo parecia não passar para o menino, que ficou na espera andando de cá pra lá ou de lá pra cá, com o galo morto de cabeça para baixo pego pelas pernas. Este tempo foi de penitência e arrependimento, tempo para refletir e meditar sobre a quebra de regras sagradas da família.
Na família temos pessoas que se destacaram por sua religiosidade, fé e prática da caridade, um exemplo é frei Benedetto Piovesan, irmão de nosso tataravô, que tem fama de santo na Itália, mas cujo processo de beatificação não andou porque a família nunca teve dinheiro para começar o processo.
Voltemos ao nosso inocente menino, arrependido de seus atos maléficos de ficar raivoso com o irmão, matar o galo e acordar o pai. Três pecados em um único gesto. Andando de um lado para outro segurando o galo morto pelas pernas de cabeça para baixo. Certamente orou e pediu aos céus perdão por seus atos e…
De repente o galo começou a se debater freneticamente, livrou-se das mãos do seu algoz e saiu correndo terreiro a fora…
Epílogo.
Para o Inácio, o alívio da tarefa que antevia pela frente que não sabia bem como realizar.
Para as meninas, carne a menos no almoço do domingo.
Para o Caco, para ele nada, ele está ainda procurando o “canivete artesanal”…
Para o galo, mais uns anos de vida comandando o harém galináceo, mesmo com o pescoço torto e o canto rouco, o que não prejudicou a sua genética que era o que importava.
Para os adultos da família, mais um acontecimento corriqueiro.
Para mim, muitos e muitos anos depois quando tomei conhecimento do ocorrido, a evidência de mais um santo na família. No entanto quando comecei a busca de dados para iniciar o processo de beatificação do primo pelo seu primeiro milagre, tropecei em dois problemas comuns aos Piovesan: a falta de dinheiro e a falta de provas documentais do milagre. Assim só me resta contar a história para que outros continuem venerando o nome e a santidade da família.