Existe uma teoria que tudo se resolve em três etapas. Deus tem três pessoas. O banquinho de três pernas é sempre estável e por aí vai… o número três é um numero mágico. E por falar em pernas a mentira tem pernas curtas.
Um.
O caminho para o Bom Retiro já era bem conhecido o Carlinhos, vulgo Mano, que trilhava todos os domingos, sempre aproveitando o atalho pela rua Zero Hora, que naquela época era mais ou menos uma trilha. Mesmo sem saber exatamente porque o pai o recomendara para fazer a catequese com o tio Abel, na capela de Nossa Senhora Aparecida, no Bom Retiro, e não com os outros meninos de sua idade que eram catequizados em Nova Palma, na matriz da Santíssima Trindade. De qualquer forma tratava-se da catequese, mas não era qualquer catequese, era a do tio Abel.
– Ah! Que belas caminhadas… sobe morro, desce morro, caminha um pouco, passa a pinguela do Soturno, onde dá pra se balançar um pouco. Depois, se juntar aos primos e amigos e ir até a capela.
O tio Abel, ou melhor a catequese dele, era disputadíssima na redondeza, tinha gente que até mudava de residência para poder participar do grupo de catequese dele. Para o Carlos isso não foi problema pois o pai tinha grande influência na paróquia e por isso matricular o filho na “catequese do Abel” não foi problema. Além disso, tem outras histórias que indicam que a família prezava muito a educação dada pelos tios, mas não importa a razão, a verdade é que o Mano ia todos os domingos para a catequese lá na capela Nossa senhora Aparecida.
Bem, exatamente não todos os domingos, porque num domingo ele encontrou amigos pelo caminho e resolveu mudar um pouco de rumo. Esta é outra característica desta família, a facilidade de improviso. Um convite para jogar um futebolzinho até que caia bem naquele domingo à tarde, e o que é um dia sem catequese, uma única faltinha, com certeza o tio vai perdoar, ele tem um coração de ouro, é só inventar uma desculpazinha qualquer.
E foi assim que o nosso catequizando mudou de rumo, afinal estaria reunido com amigos e na Bíblia está escrito: “Onde dois ou mais estiverem reunidos…” eles eram mais de vinte. Estavam ainda seguindo a Bíblia mesmo que o encontro fosse no campo de futebol em vez de ser na capela. Além disso estaria completando o time dos amigos que não poderiam jogar sem ele. Sob vários aspectos a troca da catequese pelo futebol não representava nenhum pecado imperdoável, pelo contrário, tinha lá seus méritos. Futebol com os amigos até a hora do fim da catequese pra que não ficasse muito evidente para o pai a troca de atividade daquele dia.
Dois.
Depois de cantar duas missas no domingo o regente do coro, o Pio Piovesan, chega em casa com a garganta cansada, almoça e precisa dar um descanso às cordas vocais. O dia ameno de início de outono sugere uma atividade prazerosa e tranquila, onde se possa cultivar a meditação e o silêncio. Com certeza uma pescaria no Soturno é, sem dúvida, uma bela opção. Munido de vara de pesca, uma latinha de minhocas, uma sacola para pôr os peixes e muita vontade de pescar lá vai o Pio. Bela caminhada, sobe morro, desce morro, caminha um pouco, passa a pinguela do Soturno, onde dá pra se balançar um pouco como no tempo de criança, e caminha um pouco pela barranca do rio até achar um bom lugar para pescar. Tarde agradabilíssima, não deu muito peixe, mas em compensação o silêncio, o ruído da água, que mais parece música e a paz da beira do rio são ingredientes capazes de restabelecer qualquer um.
Em se tratando do Pio isto representa um pedaço do paraíso, com exceção da paisagem até dá pra se sentir como Cristo jejuando no deserto.
Por falar em jejuar, já passam das quatro da tarde e começa a bater uma fominha, é claro que ele não levou lanche, pois perto da casa do mano Abel era só dar um pulinho lá para o “chá das quatro”. Era a hora que ele voltava da catequese, deveria estar chegando em casa, então vamos lá.
Sempre é muito gratificante visitar os irmãos em especial quando é para tomar um chimarrão, comer uma cuca ou bolachas e jogar conversa fora…
Parecia já combinado, o Pio subindo do rio pela estrada e o Abel vindo da capela se encontraram na entrada do caminho para a casa. Como a gurizada ficava para trás brincando o Pio nem notou que o Mano não vinha com ele. Como tinham inúmeros assuntos para tratar o assunto Mano só veio à tona quando o Abel perguntou:
– Porque o Carlos não veio para a catequese hoje?
O Pio coçou a cabeça, pensou um pouco e respondeu:
– Ele saiu para a catequese um pouco antes de mim e veio pra cá… A resposta ficou meio no ar, tinha algo estranho acontecendo, certamente ele deveria ouvir uma bela explicação ao chegar em casa.
O Catequista ainda falou que ele não costumava faltar, principalmente porque depois da catequese costumava jogar bola com a piazada dele.
Três.
O Carlos chega em casa suado, até meio sujo, e a mãe…
Aqui cabe um parêntesis a mãe neste caso é a tia Clementina, que corresponde exatamente a descrição do conceito de mãe, é paciente, atenciosa, amorosa e sobretudo, neste caso sem malícia. Mesmo estranhando a sujeira do filho crê que ele vem da catequese, deve ter sido alguma atividade prática que o Abel mandou fazer.
Com a maior inocência do mundo ela indaga:
– Porque não esperou o teu pai que foi pescar lá no Abel?
– É que eu fui jogar um futebol.
Foi a resposta meio lacônica, meio gaguejada, de quem acaba de ser pego numa mentira. A mãe pensando que se tratava do futebolzinho de após catequese deixou por isso mesmo, mas o Carlos… estava frito. Faltar à catequese do tio Abel, logo num dia que o pai vai lá, só podei ser castigo por ter transgredido as sagradas regras da família, a esta hora o pai já sabia de tudo. E agora? Com certeza a cinta ou a bainha do facão iriam pegar quando ele chegasse da pescaria, ainda mais que apesar de divina e relaxante não tinha rendido muito.
Mas como toda a criança, vamos dar um desconto ele ainda era criança, tem um anjo da guarda para salvar dos perigos, o Carlos também tinha o seu. Só que eu duvido um pouco que se tratava do “anjo” da guarda. Soprou uma ideia para aliviar o castigo. “Se ele tivesse meio adoentado e fosse dormir mais cedo o pai não daria o castigo naquele dia e depois, certamente, esqueceria.” E foi feito. Naquele dia o Mano foi dormir mais cedo, ficou sem janta, sem polenta com peixe frito, mas escapou da cinta.