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Sobre Liceo Piovesan

Um contador de histórias

Encontro de família e a programação da máquina do tempo

Já se tornou um hábito achar um motivo para fazer uma reunião de família pelo umas duas vezes por ano. Pelo menos na dos descendentes do Lino e da Bazilides Piovesan. Os motivos, bem! Os motivos são pelo menos dois, tanto o pai como a mãe expressaram no leito de morte, o desejo que fizéssemos uma festa de família por ano, logo para satisfazer o desejo dos dois temos que fazer pelo menos duas. Nem sempre conseguimos reunir todos, mas quase sempre atingimos uma assiduidade da ordem de 94 a 97%, ou seja faltam apenas um ou dois descendentes. Além do motivo principal é claro tem os outros: se encontrar, por as histórias em dia, falar muito (esta é uma qualidade dos Piovesan), rir um pouco, fazer travessuras, rever os irmãos, primos, sobrinhos, etc., etc., etc…

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Para o aquecimento um futebolzinho

Eu já cheguei atrasado, o guarda do estacionamento só não me barrou porque eu era irmão do organizador da festa e cunhado da aniversariante. Ah! eu ia esquecendo este era mais um motivo para estarmos juntos. Bons dias, abraços, beijos, brincadeiras e já estava rolando um aperitivozinho, um tira gosto, degustação de butiás e jabuticabas da Leda, sem falsa modéstia, os butiás da casa dela são os melhores do mundo e ponto. Uma que outra criança aproveitava o campinho de futebol ao lado para correr atras de uma bola e eu absorto olhava a cena quando comecei a ouvir vozes…

  • Eu nunca fui bom jogador, nunca gostei muito de futebol…
  • Eu também não.
  • Eu joguei algum tempo de goleiro…
  • Eu gostava de ir aos torneios de caminhão…

Não me contive e me voltei para trás, de onde vinham as vozes e acrescentei;

  • Eu tinha posição fixa, era marrecão.
  • Marrecão tio! O que é isso?
  • É uma longa história, do tempo que os campos de futebol do interior ficavam nas várzeas perto de banhados…
  • É daí que vem a expressão futebol varzeano?
  • Sim! Mas esta é uma história muito longa que eu vou contar outro dia… <leia aqui>
Com a mamãe de piloto
Escorregando no talude com um papelão

Dei corda na minha máquina do tempo, claro tenho que explicar o que é dar corda, a expressão significa carregar a bateria de energia mecânica que faz a máquina funcionar, pois bem! Dei corda na minha máquina do tempo e programei para retornar uns cinquenta anos. A programação da máquina é muito simples, instantânea, basta que uma imagem coincida com alguma guardada na memória e pronto. Além de instantânea a programação começa a vasculhar outras imagens do mesmo arquivo e pronto. Voltamos dez, vinte, cinquenta, ou até mais anos em uma fração de segundo. Eu mesmo já tenho voltado até mais de sessenta anos com esta máquina maravilhosa.

Voltei apenas cinquenta anos, acho que era o Ipiranga jogando com um time de Tiradentes. As moças de família gostavam de ir ver o futebol, pois naquela época era uma das poucas oportunidades de ver um rapaz de pernas de fora. Como eu não jogava nada não tinha este privilégio dos jogadores e por conseguinte não tinha a admiração das moças. Que chato! Mas eu era o marrecão, um piá levinho, magricelo, que conseguia correr por sobre os capins do banhado pra buscar a bola quando um fortão chutava um pouco mais forte e o goleiro não pegava. Lá ia o marrecão quase flutuando sobre o banhado e em alguns instantes a bola estava novamente em jogo. O bom da história é que lá no campo do Ipiranga o marrecão tinha uma vantagem: no banhado tinha muito guamirim e as moças gostavam de guamirim, só que depois de um ou dois jogos não havia mais nada ao alcance dos mortais comuns, só o marrecão conseguia chegar até as arvoretas com belos cachos de frutas maduras, aí as moças começavam a olhar para ele.

  • Bah! Não é pra esta história que eu queria voltar.
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… tinha que fazer uma ginástica para ficar sobre o papelinho.

É que no talude do campo de futebol algumas pessoas escorregavam com um papelão sobre a grama. Esta história é de uns cinquenta e cinco anos, como a chuva andava escassa a grama estava bastante seca e lisa e permitia um belo esporte, escorregar morro abaixo com uma casca de coqueiro, um pouco semelhante a brincadeira do talude, a lá fui eu. O papelão poderia ser grande o suficiente para uma criança de cinco ou seis anos, mas a máquina do tempo não nos

de carona com piloto experiente
de carona com piloto experiente

diminui, tive que me encolher o que deu para ficar sobre o papelão, mas a descida foi um sucesso. Em pouco tempo o número de crianças a escorregar aumentou que deu pra fazer fila, tinha piá dos dois aos sessenta e dois anos brincando, alguns mais inseguros andavam em duplas com um piloto experiente na frente, outros andavam em grupo, que tarde divertida!

Enquanto isso rolava uma partidinha de futebol dos sem camisa contra os com camisa, bem como naquela época, ao mesmo tempo alguns que não entraram nestas brincadeiras aproveitavam o tempo para o esporte preferido da família, contar histórias.

Além de todos os motivos citados acima num encontro como este descobrimos novos destinos para a nossa maravilhosa máquina do tempo.

O viajante já está dando corda, em breve partiremos para outros destinos…

O Trator

Dentre todas as maravilhas tecnológicas que povoaram a vida dos Piovesan certamente não pode faltar o Trator, aqui escrito em maiúscula por se tratar de um trator de verdade, não um tratorzinho qualquer.

O transporte de produtos, objetos pesados e pessoas sempre foi prerrogativa dos bois e da velha gaiota, quando precisava mais velocidade de deslocamento era a Lavareda, a égua tostada, que assumia a tarefa, quando precisava velocidade para um grupo de pessoas ou muitos objetos mais leves, a função era outorgada à carroça e aos cavalos tordilhos do Bôrtolo. Estes últimos, em geral eram os responsáveis pelas viagens de compras, outro assunto palpitante, mas hoje o assunto é o trator, que de certa forma veio substituir todos os outros com algumas vantagens.

O trator se transformou num faz tudo da sociedade. Aqui vemos ao fundo a moenda acionada pelo trator.

O trator se transformou num faz tudo da sociedade. Aqui vemos ao fundo a moenda acionada pelo trator.

A família já estava mecanizada, arar a terra e transportar pessoas e coisas agora já era tarefa do trator, que desenvolvia velocidades astronômicas.

A sociedade com o Marcelino Piovesan Dalbianco, primo distante e cunhado, melhorou bastante o trabalho e possibilitou desenvolvimento e mecanização ainda maiores. Foi comprada a colheitadeira automotriz John Deere (Jandira), (outra história para contar, a Reforma) para facilitar a colheita.

O trator fazendo a semeadura

O trator fazendo a semeadura

Hoje é o dia do trator, mas não pode ser contada esta sua história sem falar na colheitadeira, recém comprada, usada, caindo aos pedaços, mas trabalhando. Ela trabalhava um bocado de tempo e enchia o depósito graneleiro, aí se encostava o trator com o carroção do lado e se descarregava o soja que era ensacado para comercialização, mas tinha uns probleminhas. O descarregador do graneleiro não encaixava muito bem e tinha que alguém ficar segurando, isso não era problema pois não faltava mão de obra.

A John Deere (Jandira)

A John Deere (Jandira)

Normalmente no final do dia para facilitar a última carga do graneleiro era descarregada em casa, neste caso na casa do tio Marcelino. O trator e o carroção estavam a postos na frente da casa, no terreiro, o Léo, motorista da colheitadeira, já ia chegando quando o Lino, tratorista oficial, saltou do trator para ajudar a segurar o descarregador, o compadre Marcelino, do outro lado da colheitadeira, se preparava para segurar a alavanca do acionamento do descarregador.

Aqui precisa fazer um parênteses – O trator andava mal de bateria por isso ficou funcionando, travado é claro, ou não? – Veremos…

Três operavam na automotriz para o descarregamento enquanto o trator ficou sozinho, isso não era problema pois o terreiro era quase plano e o trator tinha freio. A operação descarga estava começando, motor do trator acionado em espera na lenta.

– Tup, tup, tup.

Motor da colheitaderia acelerado para fazer força.

– Brrrrrrrrrr!

– Clanc, clanc.

– Ok o carregador esta no ponto, acelera Léo, compadre pode acionar a alavanca!

– Grrrrr, ahhhhh!

Começou a cair o soja no carroção, que maravilha da tecnologia, o tempo da foicinha e da trilhadeira já eram parte do passado. Os grãos fluindo como uma cascata começam a formar uma pequena montanha no carroção, o trator avança um pouco para reposicionar o ponto de descarga…

– Compadre! Deu, senão o soja cai fora!

Espera aí! não tem ninguém no trator, e o Trator continua a se mover lentamente para frente.

– Pára compadre!

Nisso o Marcelino, que estava do outro lado da colheitadeira ouvindo aquela zoeira toda, ouviu a ordem e desativou a alavanca do carregamento. Os grãos pararam de fluir mas o trator não. Já começava a ganhar velocidade rumo ao potreiro e ao chiqueiro de porcos.

– Pára! Pára!

O trator não ouviu e seguiu seu caminho, os porcos que a esta altura já estavam pedindo comida vêem o trator se aproximar com uma carga de soja. O trator desobediente não ouve os gritos de – Páaaaare!  do tratorista e segue passando como um trator sobre o chiqueiro.

– Blam! Nhéééé! Crac! Tóiinn… – disseram o chiqueiro e o trator quando se encontraram.

– Quí, quíííí – gritaram os porcos correndo em direção ao banhado.

Vacinando o gado, ao fundo o açude e o banhado

Vacinando o gado, ao fundo o açude e o banhado

O trator ainda teve tempo de dizer cof! cof! antes de parar de vez.

Neste meio tempo a Jandira foi abandonada lá no terreiro e começou uma corrida de obstáculos. Léo, Marcelino, Lino, a tia e as crianças saíram em disparada para socorrer os porcos esparramados. Primeiro tinha que tirar o trator de lá, depois refazer as pressas o chiqueiro, depois catar os porcos esparramados. Alguns ainda corriam pelo potreiro, outros, os que foram em direção ao banhado estavam imobilizados pelo barro. Mas o mesmo barro que segurou os porcos também atolava os caçadores de porcos, foi uma aventura e já estava escurecendo…

Mas o pior de tudo é que depois, os porcos gritavam desesperados cada vez que ouviam o ruido do trator…

Se beber, NÃO!

Epílogo

O sol já estava quase no seu ocaso, as sombras compridas desenhavam riscos brancos e pretos no chão, no gramado da frente da casa, os palanques das velha cerca com suas sombras formavam um desenho simétrico e organizado, enquanto as sombras das árvores destoavam um pouco. O filho com a roçadeira ia emparelhando e endireitando as sombras que se projetavam sobre o gramado. O pai e a mãe que saíram para a vila logo após o meio dia ainda não voltaram, a espera é como todas as outras. Um ruído um pouco estranho, no entanto, quebra a monotonia daquele entardecer. O velho corcel que vem tossindo lomba acima dá seu último suspiro e morre ao subir a rampinha da entrada da morada. O Leonidas deita de lado a roçadeira e vai ao encontro do velho corcel ano 1972, parado, que traz em seu interior o pai e a mãe que retornam da Vila Trentin onde havia missa naquele sábado à tarde. O pai tenta mais uma vez dar partida, mas a bateria não carregou o suficiente, as luzes ainda ligadas ostentam um brilho amarelado pálido e se apagam a cada nova tentativa de partida.

– Lani dá um empurrãozinho para fazer pegar no tranco. – grita o pai com a cabeça fora da janela.

O Leonidas se aproxima do carro, olha para dentro, e não vendo a mãe pergunta?

– Pai, onde ficou a mãe?

Só então o pai olha para o banco do caroneiro e percebe que a Bazelides não está lá e responde:

– Não sei.

O Lani então espicha o olhar para a estrada que se perde na curva após o direitão do tio Luís, e lá vem a mãe, a pé, já quase de língua de fora…

 

Prólogo – é o que acontece antes da história.

Devido a escassez de padres cada paróquia, e Jaboticaba não era exceção, só tinha um padre, e como o número de capelas é grande, o vigário se vê obrigado a fazer suas visitas pastorais até mesmo fora do dia do Senhor, o domingo. Nestas circunstâncias a capela dos Três Mártires, exatamente neste dia, tinha sua missa semanal no sábado à tarde. Para os cristãos católicos isto não era um problema desde que a obrigação da missa dominical passou a ser considerada em qualquer dia da semana. E, por conta disso, o casal saíra após o meio dia do sábado para cumprir a obrigação dominical.

A missa, independentemente do dia da semana em que era celebrada, tinha uma conotação religiosa e social, pois estando os filhos de Deus reunidos para a missa não custava ficar mais um pouco após ela para celebrar o encontro, a vida social. Esta segunda celebração podia ser um encontro de comadres para visitar uma amiga enferma, conhecer o nenê de outra, tomar um chimarrão, visitar uma idosa, até algo mais profano como atualizar os assuntos do momento. Entre os marmanjos o mais comum para os mais jovens era jogar um futebolzinho e entre os mais experientes caia sempre bem um carteado, muitas vezes acompanhado de uma ou umas rodadas do liso de purinha, outras vezes de biter amargo com conhaque ou até mesmo de um garrafãozinho de vinho, tudo dependia das circunstâncias.

No nosso sábado em questão a missa foi celebrada às 13 horas, uma solicitação da comunidade para possibilitar o convívio social no restante da tarde. Depois disso algum tempo de conversa com os amigos, saudar aqueles que chegaram atrasados e partir para a socialização.  O bar do Mauri fica bem perto da capela, é fácil ir lá, para os que vêm de carro até dá para deixar estacionado no pátio da capela, é o destino daqueles que praticam o carteado, trissete, cinquilho, bisca, pife ou canastra. E é claro, para ser completo com um traguinho pra molhar a garganta. Os mais jovens desaparecem rumo ao campo de futebol e todos os carros cochilam sozinhos a espera de seus condutores no pátio da capela. Todos não, o corcel marrom ano 72 está de olhos bem abertos, digo os faróis acesos.

O seu Lino vai até o bar em companhia do Gregório, do Valdomiro, do Elso e mais uns amigos para umas rodadas de cartas. A Bazelides vai com algumas amigas e primas visitar a tia Santina, assim passa a tarde, depois da missa continua o preceito bíblico, “onde dois ou mais estiverem reunidos…” O sol já cansado daquele dia comprido de início de verão se esconde, as vezes, por traz das nuvens, mas reaparece de novo mais tarde. Finalmente se escondeu por um tempo por trás das copas dos timbós do pátio da capela e reapareceu de novo, vermelho de vergonha, por entre os troncos das árvores. É hora de ir para casa, dona Bazelides se despede das primas e da tia e se dirige ao estacionamento, não sem antes passar pelo bar do Mauri para chamar o “pai” que se entretém com o baralho espanhol e um liso de pura.

Ele é obediente a não espera a rainha do lar chamar duas vezes, termina a rodada e se levanta, ou melhor se põe de pé, vai até a porta, meio duro “das cadeiras” por ter ficado muito tempo sentado. Pelo menos é o que ele diz. Saem os dois abraçadinhos, que lindeza.

Dali até o carro não é muito longe e o ombro da esposa é uma escora e tanto para contrabalançar o desequilíbrio da cachacinha sorvida durante o jogo. A “mãe” abre o carro e ele se aboleta atrás da direção, ela também embarca à direita do “pai”.

– Guuu, cof, cof! – diz o corcel quando o motorista tenta dar a partida. Mais uma vez:
– Guuu, cof, cof! e nada, as luzes ligadas acabaram a bateria.
– Mãe! Dá um empurrãozinho para fazer pegar no tranco.

A mãe desce e se põe a empurrar o veículo ainda bem que é meio ladeira.

– Crank, gruuuu, gruuu, – diz o corcel desta vez, e se põe a caminho de casa.
– Lino! Liiiino! – grita a mãe.

Nem o corcel nem o Lino ouviram os gritos dela, já estão a caminho de casa. Sem alternativa ela se põe a caminho, desta vez a pé, é um belo quilômetro de caminhada.

 

Epílogo do epílogo

– Não sei… não sei mesmo Lani.
– Pai tu esqueceu a mãe la na vila!
– Ah! Ela foi empurrar o carro pra pegar no tranco e não embarcou depois.
– Pai, o que é isso? Andou bebendo e passou da conta.
– Não! Só foi uns traguinhos…

Casa com o paiol ao fundo.

Casa com o paiol ao fundo.

Nisso a mãe já está chegando, o Lani dá um empurrãozinho pro carro pegar e desta vez vai até o meio do pátio. O motorista desce, apesar da falta de equilíbrio e desta vez é novamente apoiado pela esposa dedicada, só que desta vez não é na direção da casa…
– Mãe! Esta é a direção errada.
– Não, a direção errada foi quando me deixou lá na vila, por causa disso hoje vai dormir no paiol.

“Dolci in scarcella” e a netinha

A tradição de carregar doces no bolso já é bastante conhecida na família, principalmente pelas crianças, era uma forma de agradar que o nono nunca negligenciou.

O casal viajante, Elizabeth e Antônio Piovesan

O casal viajante, Elizabeth e Antônio Piovesan

O episódio de hoje já é dos anos 70, a Leda já estava com uns cinco aninhos, numa das raras viagens que o nono e a nona fizeram para Jaboticaba. Eu disse rara porque a nona Elisabeth raramente viajava, lembro de apenas uma visita dela. Nesta em particular eu não estava em casa eles vieram para fazer uma espécie de férias em Jaboticaba onde moravam os filhos Lino e Achiles e os irmãos dela o tio Atílio e tio Aurélio Zanon. Eles ficaram quase uma semana e como o Toni não ficava muito tempo longe de um traguinho teve que achar um método de levar o ingrediente consigo, só que tinha um probleminha, a nona não gostava muito deste hábito, até porque tinha uma outra história, que será contada oportunamente, de ajudá-lo a atravessar a pinguela quando voltava da missa devidamente batizado. Como ele iria ficar alguns dias deslocado de seu ambiente natural, e evidentemente do bar do Alessio, resolveu utilizar o método largamente conhecido nos filmes de faroeste de levar o combustível num vidro chato, organicamente curvado para se acomodar ao bolso sem despertar suspeita, um vidro de Biotônico Fontoura.
Na visita ao Lino enquanto a nona, a nora Bazilides e o Lino tomavam chimarrão na cozinha ele saiu dar uma volta para “ver as plantas”, aliás um hábito que eu também tenho, só que não era exatamente para ver as árvores, quando chegou aos fundos da casa levou a mão discretamente ao peito, pelo lado de dentro do casaco e sacou a arma, digo o vidro, e sorveu um belo trago.

A netinha inocente

A netinha inocente

Quando abaixou os olhos viu a netinha Leda, que brincava na terra. Aí bateu o pânico, tomar bebida alcoólica escondido da esposa, e pior, na frente de uma criança, e se ela falasse… por via das dúvidas era preciso fazer algo.
Ha! “i dolci” – lembrou das balas que estavam no bolso. Tirou um belo punhado e ofereceu para ela, mas com uma condição, que não falasse e a “cachacetta”.
A Leda que não sabia do que se tratava achou um bom negócio aceitar as balas para ficar quieta, até porque nem sabia de que se tratava aquilo que ele havia bebido.
Muitos anos depois, até porque nos outros protagonistas já faleceram, a menina resolveu confessar a travessura do nono. Agora ela sabe que não era exatamente Biotônico que o vô tomava escondido…

Visita surpresa

Colhida nas memorias da Silvia

Já era tradição, na época das férias de julho, esperar a prima que vinha de Porto Alegre para passar as férias comigo. A tia Odila, tendo se criado na roça, não queria que a filha perdesse as oportunidades de conviver com aquele estilo particular de vida, por isso dava um jeito de avisar o pai que a Fabíola estava chegando para mais umas férias, sempre com alguns dias de antecedência.
No entanto algo estranho começava a acontecer no mês de julho de 1992, a primeira semana já se passara e não havia chegado a comunicação para buscar a prima na rodoviária. De qualquer forma se ela vem darão um jeito de avisar ou na pior das hipóteses ela vai até o tio Pio e algum dos guris traz ela. Normalmente o recado vinha por algum conhecido no domingo durante a missa, alguém que tinha telefone, é claro, aí eu ou um dos guris ia até a rodoviária esperar o ônibus.
Como já ia quase para o fim da segunda semana eu estava começando a ficar preocupada. A minha missão, durante as férias, era de passar o tempo todo brincando com ela e defendendo ela dos monstros que tinha ao redor da casa como: porcos, galinhas, trator, vacas, grilos, formigas e terneiros.
– Ah! Eu ia me esquecendo. Ela tinha medo de tudo o que se mexia. Menos da água pois adorava tomar banho no rio, mas tinha medo de pegar os peixes na mão quando a gente ia pescar, e minhoca então nem pensar.
Enquanto isso, na cabeça da Fabíola no, auge de seus 12 anos, se passava “é hora de deixar de ser tratada como criança, chega de ficarem andando de lá pra cá por minha causa”. Fabíola este ano faria uma surpresa para Sílvia, para nona e para o tio Abel. Fez a mãe pensar que tinha mandado o recado de sua chegada mas não mandou dizer nada seria a “Visita surpresa”, se não tivesse polenta que chega azar, mas o gostinho de aprontar uma arte compensaria. Com a passagem comprada até Santa Maria, onde a prima Rosália tinha a incumbência de esperar na rodoviária e embarcá-la para Nova Palma, teve mais que tempo para planejar como iria concretizar a sua surpresa.
Com a chega prevista para as 14 horas dava mais que tempo para ir a pé tranquilamente até a casa da nona antes que escurecesse. Por que para a Fabíola em Nova Palma todas as pessoas eram boas, ao contrário da Capital, onde deveria tomar cuidados com estranhos. Ia ser uma surpresa e tanto, quase seis horas de viagem para planejar nos mínimos detalhes a chegada. O embarque foi tranquilo, a mãe recomendou ao motorista o cuidado com a filha e principalmente o cuidado de entregá-la a um parente em Santa Maria. Na cabeça da mãe, em Nova Palma, seria o Abel ou a Silvia ou, talvez, um dos guris, que a pegariam na Rodoviária. Na cabeça da filha, todo mundo me conhece na rodoviária e quase todos são parentes lá. Seria uma quebra de rotina, um dispeto, como diria o tio Lino, coerente com as tradições familiares.
– Ah! O gostinho de fazer uma arte. O plano. Chegando na rodoviária vou direto a Casa do Tio Pio, ter um dedo de prosa com a prima Janine, depois, como já sou mocinha, posso ir andando e daí é só caminhar tranquilamente até lá e… surpresa! Tempo para imaginar cada detalhe não faltou afinal foram quase seis horas sozinha naquele ônibus. A chegada a Nova Palma foi sem incidentes, eram quatorze e pouco, foi a casa do tio Pio e papeou com a prima Janine, que já estava de saída. Então falou para a Janine,que iria aproveitar a saída dela e iria andando. Vejo vocês na missa do domingo. E lá se foi pela estrada principal carregando a maleta.
– Não precisa caminhar muito depressa pois a ‘tarde ainda é criança’, tem muito tempo. Que legal poder caminhar curtindo a paisagem, a estrada deserta. Neste horário todo mundo estava na lavoura e como o tempo estava, bom tem que aproveitar principalmente para carpir as lavouras.

Toni (do Achiles) e Ana atravessando o rio pela pinguela improvisada enquanto a turma toma banho de rio.

Toni (do Achiles) e Ana atravessando o rio pela pinguela improvisada enquanto a turma toma banho de rio.

Na época tinha dois caminhos para chegar na casa do tio Abel: seguindo pela estrada atravessando o rio na ponte nova e descendo de volta pela escola ou descendo pela trilha da estrada velha atravessando o rio pela pinguela improvisada, que era muito mais curto, só tinha o inconveniente da pinguela. É claro que a segunda opção foi a escolhida, até porque depois de uma caminhada destas qualquer metro a menos de estrada faz diferença. Já estamos quase lá é só passar a cerca caminhar uns duzentos metros pelo potreiro do Valdecir Rossato atravessar o rio e pronto… Surpresa! Chiii! a surpresa veio antes. Do outro lado da cerca estão passando pequenos monstros com chifres que fazem bééé. Meu Deus e agora? Passar rapidamente a cerca de volta e fazer a volta pela ponte. Mas é longe, dá mais de um quilômetro, a mala está pesada. Ainda bem que aquelas cabras malvadas estavam passando, daqui a pouco,elas se vão e eu posso ir tranquila.
O que a menina moça não contava é que as cabras estavam pastando e não passando, o que começou a aumentar significativamente o tempo de espera. Pelo menos, ali perto da cerca, tinha uma pedra grande que dava pra sentar. Mas já está ficando tarde e aqueles bichos perigosos não vão embora, será que estão esperando uma vítima? Eu é claro. O sol começava a se pôr e logo iria escurecer. As cabras pastantes, seguiram a sua trilha e liberaram o caminho para a Fabíola seguir viagem …
– Ah, que alívio! – Agora posso ir e tem que ser depressa antes que anoiteça.
Fabíola Imaginou que teriam se passado varias horas, mas apos o episodio ao olhar no relógio percebeu que somente havia transcorrido míseros 20 minutos.
A panela da polenta já está com a água quase fervendo, a mãe, o pai e a nona tomam chimarrão na cozinha. Um dos guris está tirando água do poço. Os cachorros começam a latir como quando fazem festa para algum conhecido. Ouvimos um grito desesperado:
– Siiiiilvia! vem me salvar destes monstros que estão me atacando! Surpresa! é a Fabíola que chegou sem avisar.

A enchente de 1984

História baseada nas memórias da Silvia

Maio em geral foi o mês dos grandes eventos da família, por diversas razões os grandes milagres também aconteceram neste mês. Exatamente no ano do centenário da imigração italiana na quarta colônia, quando a euforia pela saga dos italianos na região atingia seu auge o tempo se desenrolava com características peculiares. O ano prometia ser chuvoso, e maio em especial começou mostrando um comportamento peculiar. Muita coisa acontecia nos dias de chuva, a chuva era, por assim dizer, uma benção, irriga as plantações, abastece as fontes, e autoriza um dia de folga ou pescaria conforme já vimos ou veremos em eventos da família. Mas nosso assunto, neste momento, é a chuva de maio de 1984, o ano do centenário da imigração.
A chuva já cai por mais de uma semana sobre as terras do Bom Retiro, de Nova Palma, da região, do estado e do sul do país. Para os que vivem nas cidades, mesmo em Nova Palma, isso não muda muito a rotina de trabalho, a semana segue seu curso preestabelecido, no entanto para os agricultores significa uma quebra radical da rotina. No primeiro dia deixa chover, aproveita-se para fazer um dia de descanso para os que trabalham na lavoura, é claro, os guris Abel, Cláudio, Inácio e Bernardo. As meninas, Sílvia, Alice, Verônica e Letícia aproveitam para fazer uma grande faxina e organização da casa, com a ajuda da mãe e da nona. O segundo dia, se der uma estiada é propício para uma pescaria, vai pescar quem estiver de folga, alguem tem que ficar em casa pra fazer a comida. No terceiro dia… Bem! A partir do terceiro dia não tem mais nada pra fazer, o tempo começa passar muito devagar, é preciso encontrar alguma coisa pra fazer tipo, jogar trissete entre os homens e escutar a Verônica lendo as histórias do Naneto Pipeta. Quarto… quinto…. sexto… o tempo passa cada vez mais devagar… A chuva não passa, a medida que o tempo passa, as águas atingem o máximo que a terra pode absorver e começam a formar a enxurrada, atingem os rios e arroios e se precipitam em direção ao oceano, um dos caminhos é o Soturno.
O Soturno contorna quase toda a terra da família, começa a subir e, se continuar, vai deixar a família Piovesan ilhada. Já é o oitavo dia consecutivo de chuva todo o sul do país já apresenta sinais de enchente, milhares de desabrigados e desalojados desfilam nas imagens dos telejornais, as defesas civis dos municípios trabalham sem cessar, enquanto isso na casa de nossos personagens a rotina é outra. As meninas, Sílvia Alice e Letícia, continuam ouvindo as histórias do Naneto Pipeta, os guris e o pai jogam trissete, uma partida depois da outra.
O mundo lá fora, o da TV não existe para a família, não tem televisão, logo o mundo la fora é a chuva, o barulho da chuva e quando cai a noite… O Soturno “scumicia a rudare”, – diz a nona – (começa a roncar) o nível da água sobe assustadoramente. O chiqueiro é inundado e os porcos devem ser soltos para não morrerem afogados. As galinhas e frangos são levados para a casa velha. Pela experiência de anos anteriores a tensão começa a aumentar, o perigo de ficarem ilhados já é uma realidade. A água começa a subir pela estrada a barragem não dá mais passagem.
O então patriarca Abel, com toda sua calma e previsibilidade ordena as medidas para a noite de vigília. Engatar o reboque no trator e carregar os pertences básicos caso seja necessário deixar a casa e deixar o reboque em lugar estratégico. A família se abrigará na escola, sem saber estão fazendo como em todo o sul do país. Todos permanecerão acordados, os meninos jogando com ele e as meninas ouvindo a Verônica ler histórias. A mãe (Alzira) ao lado do fogão, pois faz muito frio, esfrega as mãos de nervosa e a mãe, (nona Isa) no quarto reza um terço após o outro, quando cansa de ficar ajoelhada no quarto dá uma volta nervosa pela casa com a corona (terço) na mão. Todos os outros devem manter a calma como convém aos Piovesan.
Cai a noite e o ruído da água do Soturno parece gritar espantando as pessoas e animais para que se afastem em vista do perigo que se aproxima. Na casa o silêncio é quebrado pela voz monótona e cadenciada da leitura de Naneto Pipeta. Vez por outra uma árvore que desce rio abaixo vem quebrando galhos e fazendo sons diferenciados. Os animais silenciosos aguardam apreensivos o desenrolar dos fatos. A chuva mansa canta uma canção assustadora, cadenciada pelo troar dos canhões dos raios e iluminada pelos flashes dos relâmpagos intermitentes. O Soturno ronca contra as pedras e barrancas com um som grave,carregado, sombrio, taciturno, tristonho, infunde pavor, parece fazer honrarias ao próprio nome. Dentro de casa família aguarda apreensiva, a mãe de vez em quando coloca mais uma acha de lenha no fogão para manter o fogo e a casa aquecida, os guris jogam com o pai e a nona reza. Os porcos assustados perambulam pela propriedade não entendendo o porque desta liberdade, que ao mesmo tempo amplia seus domínios, mas afasta-os de sua casa, agora tomada pela água. As galinhas, e frangos, que ocupam a casa velha sentem a situação como uma honraria estranha, os ruídos da noite não são de nenhum predador, mas mesmo assim assustam. A chuva acalma, já se assemelha a uma cantiga de ninar, no entanto o troar dos trovões e o ronco do rio destoam.

– Vou ver o nível da água na estrada – disse o pai. E lá se foi ele seguido pelos guris e pelas meninas mais curiosas. A água corria depressa pelo leito do rio e formava ondas que subiam pela estrada, a cada onda avançava um pouco mais evidenciando que o nível subia, e isso assustava. O pai resolveu então tomar uma decisão, demarcar o limite para saírem de casa.

Barragem do Soturno no Bom Retiro, foto feita de cima da pinguela em maio de 1979, cinco anos antes da nossa história.

Barragem do Soturno no Bom Retiro, foto feita de cima da pinguela em maio de 1979, cinco anos antes da nossa história.

Questo sasso. – Esta pedra é o limite, se a água passar dela temos que sair de casa senão ficaremos ilhados. Os guris continuam jogando cartas e ao fim de cada partida um vai até a estrada ver o nível da água. A mãe continua perto do fogão esfregando as mãos, as meninas ouvem a leitura da Verônica, enquanto a nona continua no quarto a rezar. Já foi um terço, dois, um inteiro (rosário), mais um e a rotina continua. A mãe é intimada a ir descansar, os outros continuarão a vigília. Já é madrugada e de repente um estrondo sinistro e assustador seguido de um aumento do volume dos sons do rio.
Maria Vergine! – gritou a nona – o que foi isso?
Um ruído de árvores arrastadas se aproxima da casa, o rio começa a roncar aliviado como se uma barreira tivesse sido eliminada. E foi… a pinguela que retinha galhos de árvores e até árvores inteiras, fazia uma barreira que dificultava o curso da água, até que ela, demonstrando sua força, rompeu os cabos de aço e levou abaixo aquele estorvo. Secretamente já havia levado a barragem da estrada, e levava abaixo tudo o que poderia dificultar seu caminho. Foi a pinguela, mas está escuro, não dá pra ver os detalhes o observador da pedra limite com guarda chuva e lanterna observa a água chegando, centímetro após centímetro conquistados pela água a cada onda. A água chega na pedra, algumas ondas já ultrapassam, mas a pedra ainda não está coberta. Alguma onda cobre a pedra, a tensão aumenta, as cartas ficam de lado e os observadores se juntam ao redor da pedra, as palavras do pai ecoam nas mentes.
– Se a água passar da pedra temos que sair de casa.
Uma onda um pouco maior cobre a pedra por completo e recua, outra onda avança e recua, as ondas passam a determinar o ritmo da respiração da família. Os avanços e recuos começam a ficar assimétricos, a água começa a recuar lentamente, começa a se distanciar, já não atinge mais a pedra. Todos respiram aliviados, as orações da nona alcançaram mais um milagre, como tantos outros na família, agora poderiam se recolher para a cama. Já é madrugada está quase na hora do galo cantar, mas o grupo familiar exausto se recolhe para a cama…
O ruído da água ainda alta no rio, mas agora correndo tranquila e baixando lentamente embala o sono da família, que não dura muito. São despertados ainda de madrugada, lá pelas 10 da madrugada, pelos gritos e assobios do Tarcísio e do Horácio, enviados especiais do tio Pio para ver como estava a mãe, o irmão e a família. Os dois foram direto para a pinguela, que não estava mais lá.
– Meu Deus! O tio e a nona estão ilhados. – fala o Horácio.
– Bem, Bem… mas eles tem o nosso caíque que esta guardado no galponeto deles – completou o Tarcísio.
– Mas parece que não tem ninguém em casa. Acho que foram se abrigar na escola.
– Acho que não. O trator ainda tá com o reboque na frente da casa…
– Então vamos gritar pra ver se acordamos eles…
E foi o que fizeram. Não tardou muito a turma começou a acordar com o gritedo. Aí eles disseram do caíque, e souberam que todos estavam bem. O caíque foi largamente utilizado pela comunidade como meio de passagem do rio por algum tempo já que a barragem e a pinguela tinham ido agua abaixo.

A mula que não queria rezar

O Carlos já estava se sentindo o máximo com a história de matar a catequese e foi aí que me caiu no colo outra história que coloca a dele no bolso, ele não foi o primeiro na família…
Não sei se o numero três é mágico, mas tem a ver com as aventuras ligadas a catequese na família. Foi lá pelo ano de 1909 (três vezes três), os três filhos mais velhos do Giovanni Marco já estavam na idade de frequentar a catequese, nesta época já moravam na costa do Portela no caminho de Linha Base. A moradia ficava uns três quilômetros da matriz, uma distância um pouco grande para ser percorrida a pé pelas crianças, daí a opção de ir à cavalo, ou melhor à mula. A “mussa vecchia” era o meio de transporte dos irmãos, Beppi, Ângelo e Toni. Logo após o meio dia os três montavam a “mussa” e rumavam para a igreja para as aulas de catequese.

A “mula velha” era um animal extremamente pacífico e tranquilo, cobria o trajeto em aproximadamente quarenta minutos, ou seja, um pouco mais devagar do que um adulto anda a pé. A viagem era muito tranquila e permitia a contemplação da natureza no decorrer da mesma. Depois de ir e vir muitas vezes, o caminho já decorado, começava a perder a graça e a catequese, bem a catequese era uma obrigação, um compromisso, e apesar da educação religiosa e rigorosa, às vezes batia aquela vontade travessa de fazer algo diferente aos domingos à tarde. Achar uma desculpa plausível e razoável para faltar a catequese passou a ser uma tarefa dos meninos.

Licéia, Lucidio e Léia montados na tostada do tio Marcelino, um arranjo comum desde a época do meu avô, andar três ou mais crianças no cavalo. No finalzinho do vídeo eu e a Licéia no alazão do tio Aquiles.

Licéia, Lucidio e Léia montados na tostada do tio Marcelino, um arranjo comum desde a época do meu avô, andar três ou mais crianças no cavalo. No finalzinho do vídeo eu e a Licéia no alazão do tio Aquiles.


Não demorou muito, na observação do comportamento da mula eles descobriram que ela não gostava de ser contrariada, como por exemplo, ser acelerada, qualquer forma de instigação para que andasse mais de pressa ela fazia o contrário, parava. Empacava, e a partir disso não se mexia mais e se batessem nela, baixava a cabeça, se ajoelhava com as patas da frente e derrubava a gurizada no chão. O método, para matar a catequese, passou a ser: apertar os calcanhares na barriga dela para que ela parasse e a partir daí continuar tentando fazer ela andar até que ela decidisse derrubar o grupo, preferencialmente num lugar com barro. Sujos não tinham outra roupa para vestir aí não poderiam ir para a catequese, culpa da mula que tinha a mania de se ajoelhar.

O arrodeador de bandeira

Não fui capaz de determinar com precisão de onde surgiu o termo “bandeira” para designar o monte de espigas de milho colhido. Um costume ancestral na colheita do milho consiste em calcular o centro de um quadrado de lavoura de mais ou menos 6 braças (13,32 metros) de lado, colher as espigas neste centro deitar as canas, (hastes do pé de milho) e depois ir colhendo ao redor e jogando o milho no ponto inicial até ter um monte de espigas, conhecido como bandeira. Em biologia a ponta da haste terminada num penacho ou pendão, a flor masculina, é também chamada de bandeira. O ato de colher as espigas e deitar a haste também é chamada de deitar bandeira, talvez venha daí o nome bandeira para o monte de espigas colhidas. Até aqui apenas definimos o monte de milho colhido que depois era carregado na carroça, ou gaiota no caso do Lino, para ser levado para casa.
Gaiota, dirigida pela Leda, uns 15 anos após o episódio narrado.Quando fazia tempo bom era urgente a colheita para aproveitar o milho bem seco que durava mais no paiol, por isso era comum pedir ajuda de algum vizinho para acelerar a colheita, o nosso vizinho era, em geral, o seu Generoso, naquele dia pela manhã o Léo e eu estávamos na aula, O pai e o vizinho trabalharam desde bem cedinho, o tempo estava bom, e ao meio dia já carregaram uma gaiotada de milho que foi descarregada logo após o almoço. Em seguida voltaram para a lavoura, aquela que ficava entre o canavial e as fontes, desta vez o Léo e eu fomos juntos. Quase quatro horas tinha milho suficiente para carregar uma carga. Carregamos e o pai foi para casa descarregar e trazer a merenda, o chá das quatro. Um bule com chá de mate com leite e fatias de pão com chimia. Na volta além do lanche o Leonildo veio de carona, ele tinha na época uns oito anos, já participava de muitas atividades na lavoura, mas quebrar milho exigia bastante força nas mãos então ele ajudava mais no serviço de carregar.
Para fazer render o serviço, seu Generoso começava a bandeira um pouco mais longe, umas 10 braças, aí eu e o Leo íamos colhendo perto da bandeira e ele e o pai iam pelas beiradas, pois tinham mais força para atirar as espigas longe. Ele gostava de usar este método pois facilitava também na hora de recolher porque tinha montes (bandeiras) maiores o que significava menos paradas para carregar. Só tinha um inconveniente, em função da distância o milho ficava um pouco mais esparramado. Para resolver o problema bastava dar uma volta ao redor da bandeira jogando as espigas mais distantes para o centro, este trabalho se chamava “arrodear a bandeira.”
Estávamos no finalzinho do verãozinho de maio, os dias já começavam a encurtar prenunciando o inverno e tinha umas nove bandeiras para carregar e faltava um trecho pequeno para terminar a lavoura. Seu Generoso queria terminar a empreitada e o Léo e eu ajudávamos ele, o pai começava a carregar, e o dia ia chegando ao fim. As bandeiras ainda não tinham sido arrodeadas, o que dificultava o trabalho do pai, e iria dificultar mais ainda com o crepúsculo. Foi aí que seu Generoso pediu que o Leonildo arrodeasse as bandeiras enquanto nós terminávamos de quebrar o restinho do milho. O Leonildo respondeu prontamente a solicitação até porque não ficava bem desobedecer o vizinho, e lá se foi ele. Já começava a escurecer quando colhemos as últimas espigas, fomos então ajudar o Leonildo antes que escurecesse de vez. Passamos pela primeira e achamos muito milho esparramado, seu Generoso não disse nada, juntamos as espigas esparramadas e amontoamos no centro e fomos adiante. Na outra também tinha muito milho esparramado, aí ele falou que achava que o guri não estava enxergando direito. Repetimos a cena e quando caminhávamos para a terceira vimos uma cena que fez com que seu Generoso não parasse de rir por uma boa meia hora… O “arrodeador de bandeira” chegava naquele momento à quinta, e começava seu trabalho, deu uma volta pela esquerda e não satisfeito outra pela direita sem juntar uma espiga sequer e se foi em direção a próxima bandeira. Ele estava arrodeando as bandeiras… O Seu Generoso caiu na gargalhada. O Leonildo estava cumprindo ao pé da letra a ordem dada.

O rabo de bugio

História contada pela Neli, com redação minha. Coloquem-se no lugar dela, acostumada a ver o pai bater no irmãozinho mais novo, o Vicente no caso.

Foi lá por maio de 1967, o pai estava cortando rama de mandioca na lavoura lá do fundo, não lembro onde o Toni e o João estavam. A mãe pediu para mim e o Vicente ir buscar batata na roça para cozinhar para o almoço. Aí nós pegamos um saco de linhagem e uma enxada e fomos. O batatal ficava na várzea na lavoura que ficava depois do potreiro. Enquanto arrancávamos as batatas podíamos ver o pai trabalhando na roça lá em cima do morro, aí o Vicente falou que o pai tinha xingado ele. Eu tinha dó dele porque o pai sempre xingava por qualquer coisinha, ele também apanhava muito.
Quando estávamos voltando para casa tinha um trecho da estrada que eram dois trilhos por onde passava a carroça e o resto era coberto de capim, que estava bem alto. O Vicente disse que ia amarrar os capins para o pai tropeçar quando passasse por lá. Eu fiquei quieta, não gostava das artes do Vicente, mas também não gostava de ver ele apanhando, e ele foi amarrando os capins de um lado com o outro dos trilhos.
Chagamos em casa e fomos brincar, e quando foi perto do meio dia que o pai veio para almoçar ele tropeçou nos capins e rebentou uma das varizes que ele tinha na perna e não parava mais de sair sangue. Ele chegou em casa já bem mal, aí a mãe fez curativo e conseguiu fazer parar o sangue. Nós estávamos brincando no quarto quando ele disse que queria falar com o Vicente, porque ele tinha visto de lá de cima que nós tínhamos passado por lá.
Aí eu fechei a porta do quarto e fiquei segurando e tranquei a tramela. Aí o pai batia na porta e queria que eu abrisse, mas eu tinha dó do Vicente e não queria vê-lo apanhar. Eu não abri a porta, então o pai pegou o facão e enfiou na fresta da porta e abriu a tramela, eu ainda tentei segurar a porta, mas o pai tinha mais força. Quando o Vicente viu que o pai tinha aberto a tramela, pulou a janela e se foi pro mato aí só fiquei eu no quarto. Quando o pai entrou e me viu, ele disse que eu estava acobertando as artes do meu irmão, e como ele tinha fugido eu é que ia apanhar uma surra com a vara de rabo de bugio.
Até hoje ainda me dói as varadas, mas apesar disso não fiquei com raiva, aprendi a não acobertar os erros dos outros, pois agora sei que era o jeito deles de educar.

Os figos sagrados (modificado)

Já no final dos anos 50 o Toni começou a apresentar um problema de visão, até foi ventilado que provavelmente se tratava de cegueira noturna. Provavelmente era apenas um quadro de avitaminose A que fazia com que ele tivesse dificuldade de enxergar na penumbra. Por esta razão comprou uma égua a Zaina para ir aos ensaios de canto do padre Afonso Correa. Apesar disso o Bernardo não concorda muito com esta afirmativa.
Pelo sim pelo não uma das teteias do nono eram as frutas que ele cultivava, o parreiral sempre era mantido impecável, as laranjeiras da frente da casa, definiam o limite do terreiro, as bergamoteiras se espalhavam por diversos lugares e a figueira… Bem a figueira mesmo dando frutos sem vitamina, e por consequência, inócuos para a questão da cegueira noturna, a figueira era cuidada com um zelo especial, por duas razões: as folhas quando colocadas no alambique para destilar a cachacinha davam um sabor especial e os figos, estes eram um manjar dos deuses, que ele cuidava para que amadurecessem no pé, pois assim ficavam mais doces. Só quem já comeu um figo colhido totalmente maduro sabe o que é degustar uma delícia, diga-se de passagem, mais uma dádiva sagrada deixada pelo criador aos mortais.
No entanto um grande problema para os adoradores de figos, eu também sou um deles, é que muitos passarinhos e até aves maiores também tem uma atração especial por esta fruta e por isso é preciso vigilância constante ou alguns truques para poder saborear figos maduros. No Bom Retiro, no ano de 1963, atrás da casa, a figueira do Toni não era exceção à regra, passarinhos tentavam degustar os figos antes do proprietário, e se já não bastasse isso o galo de terreiro descobriu o sabor da tão cobiçada fruta e começou também ele a se banquetear pousado nos galhos da figueira. O Toni já enfrentava a gula das galinhas que atacavam os cachos mais baixos da uva e agora tinha que enfrentar o galo que também queria dividir a produção da figueira.
Como método para desestimular os comensais indesejados ele desenvolveu a técnica de jogar pedras, juntava alguma pedrinha com a canhota e jogava de forma certeira. Na maioria das vezes, depois de uma ou duas pedradas a ave aprendia que aquele era território proibido, o mesmo aconteceu com o galo comedor de figos. Mesmo assim os figos continuavam a desaparecer antes de estarem maduros no ponto que ele esperava. Chegou a passar quase o dia todo a vigiar a dita árvore e não conseguiu descobrir como galo conseguia roubar-lhe os figos, a esta altura já estava a desconfiar que pudesse ser um galo astuto treinado pelo Lino para fazer sacanagem, mas o Lino já estava fora há mais de 10 anos, talvez outro estivesse treinando o galo, de qualquer forma não era de dia que os figos eram roubados. A menos que o galo se recolhesse ao anoitecer e depois voltasse para comê-los. Já tinha passado e repassado todas as hipóteses e não chegara a nenhuma conclusão.
Já começava a anoitecer e as galinhas já estavam recolhidas, o Toni se dirigia à cozinha, onde a Nona preparava a água da polenta, quando ele ouviu um ruído vindo de trás da casa. (PS.:) Não esperou nenhum segundo e foi correndo em direção à árvore do paraíso, um vulto escalava a figueira em direção aos frutos quase amadurecidos. Neste momento precisava manter o sangue frio, já tinha sido afrontado por demais pelo galo de terreiro. Juntou uma bela pedra do chão e pensou consigo mesmo: – Quá comando mi. (Aqui eu mando). Ajustou da melhor forma a pedra na mão esquerda e lançou com vontade…

Foto da família aproximadamente da época do fato. Toni de chapéu e Bernardo um dos meninos de cócoras.

Foto da família aproximadamente da época do fato. Toni de chapéu e Bernardo um dos meninos de cócoras.

O pobre bicho deu um grito e despencou galhada abaixo, mas não era um galo. Xi acho que houve um problema! Foi até a figueira e não conseguindo ver direito arrastou o animalzinho desacordado até onde havia luz. Alertados pelo grito estranho já correram para fora o Abel, a Alzira e a Isa, ainda com a mescola da polenta na mão e uma lamparina. Era o Bernardo, meio desacordado e com um baita galo no meio da testa causado pela pedrada do nono. Galo! A esta altura o Toni não queria mais saber de ouvir falar em galo.

PS.: Quando o Bernardo leu a história ficou intrigado, pois não se lembra o que o nono disse ou fez para que ele descesse da figueira, agora só nos resta a confirmação ou a alteração da história pela tia Alzira. Isto modificaria o final da história, caso não tivermos nenhuma outra informação vou manter este final que combina com o estilo da família de reescrever finais para as histórias como o nono, o pai, o tio Pio e o tio Abel faziam magistralmente.