História baseada nas memórias da Silvia
Maio em geral foi o mês dos grandes eventos da família, por diversas razões os grandes milagres também aconteceram neste mês. Exatamente no ano do centenário da imigração italiana na quarta colônia, quando a euforia pela saga dos italianos na região atingia seu auge o tempo se desenrolava com características peculiares. O ano prometia ser chuvoso, e maio em especial começou mostrando um comportamento peculiar. Muita coisa acontecia nos dias de chuva, a chuva era, por assim dizer, uma benção, irriga as plantações, abastece as fontes, e autoriza um dia de folga ou pescaria conforme já vimos ou veremos em eventos da família. Mas nosso assunto, neste momento, é a chuva de maio de 1984, o ano do centenário da imigração.
A chuva já cai por mais de uma semana sobre as terras do Bom Retiro, de Nova Palma, da região, do estado e do sul do país. Para os que vivem nas cidades, mesmo em Nova Palma, isso não muda muito a rotina de trabalho, a semana segue seu curso preestabelecido, no entanto para os agricultores significa uma quebra radical da rotina. No primeiro dia deixa chover, aproveita-se para fazer um dia de descanso para os que trabalham na lavoura, é claro, os guris Abel, Cláudio, Inácio e Bernardo. As meninas, Sílvia, Alice, Verônica e Letícia aproveitam para fazer uma grande faxina e organização da casa, com a ajuda da mãe e da nona. O segundo dia, se der uma estiada é propício para uma pescaria, vai pescar quem estiver de folga, alguem tem que ficar em casa pra fazer a comida. No terceiro dia… Bem! A partir do terceiro dia não tem mais nada pra fazer, o tempo começa passar muito devagar, é preciso encontrar alguma coisa pra fazer tipo, jogar trissete entre os homens e escutar a Verônica lendo as histórias do Naneto Pipeta. Quarto… quinto…. sexto… o tempo passa cada vez mais devagar… A chuva não passa, a medida que o tempo passa, as águas atingem o máximo que a terra pode absorver e começam a formar a enxurrada, atingem os rios e arroios e se precipitam em direção ao oceano, um dos caminhos é o Soturno.
O Soturno contorna quase toda a terra da família, começa a subir e, se continuar, vai deixar a família Piovesan ilhada. Já é o oitavo dia consecutivo de chuva todo o sul do país já apresenta sinais de enchente, milhares de desabrigados e desalojados desfilam nas imagens dos telejornais, as defesas civis dos municípios trabalham sem cessar, enquanto isso na casa de nossos personagens a rotina é outra. As meninas, Sílvia Alice e Letícia, continuam ouvindo as histórias do Naneto Pipeta, os guris e o pai jogam trissete, uma partida depois da outra.
O mundo lá fora, o da TV não existe para a família, não tem televisão, logo o mundo la fora é a chuva, o barulho da chuva e quando cai a noite… O Soturno “scumicia a rudare”, – diz a nona – (começa a roncar) o nível da água sobe assustadoramente. O chiqueiro é inundado e os porcos devem ser soltos para não morrerem afogados. As galinhas e frangos são levados para a casa velha. Pela experiência de anos anteriores a tensão começa a aumentar, o perigo de ficarem ilhados já é uma realidade. A água começa a subir pela estrada a barragem não dá mais passagem.
O então patriarca Abel, com toda sua calma e previsibilidade ordena as medidas para a noite de vigília. Engatar o reboque no trator e carregar os pertences básicos caso seja necessário deixar a casa e deixar o reboque em lugar estratégico. A família se abrigará na escola, sem saber estão fazendo como em todo o sul do país. Todos permanecerão acordados, os meninos jogando com ele e as meninas ouvindo a Verônica ler histórias. A mãe (Alzira) ao lado do fogão, pois faz muito frio, esfrega as mãos de nervosa e a mãe, (nona Isa) no quarto reza um terço após o outro, quando cansa de ficar ajoelhada no quarto dá uma volta nervosa pela casa com a corona (terço) na mão. Todos os outros devem manter a calma como convém aos Piovesan.
Cai a noite e o ruído da água do Soturno parece gritar espantando as pessoas e animais para que se afastem em vista do perigo que se aproxima. Na casa o silêncio é quebrado pela voz monótona e cadenciada da leitura de Naneto Pipeta. Vez por outra uma árvore que desce rio abaixo vem quebrando galhos e fazendo sons diferenciados. Os animais silenciosos aguardam apreensivos o desenrolar dos fatos. A chuva mansa canta uma canção assustadora, cadenciada pelo troar dos canhões dos raios e iluminada pelos flashes dos relâmpagos intermitentes. O Soturno ronca contra as pedras e barrancas com um som grave,carregado, sombrio, taciturno, tristonho, infunde pavor, parece fazer honrarias ao próprio nome. Dentro de casa família aguarda apreensiva, a mãe de vez em quando coloca mais uma acha de lenha no fogão para manter o fogo e a casa aquecida, os guris jogam com o pai e a nona reza. Os porcos assustados perambulam pela propriedade não entendendo o porque desta liberdade, que ao mesmo tempo amplia seus domínios, mas afasta-os de sua casa, agora tomada pela água. As galinhas, e frangos, que ocupam a casa velha sentem a situação como uma honraria estranha, os ruídos da noite não são de nenhum predador, mas mesmo assim assustam. A chuva acalma, já se assemelha a uma cantiga de ninar, no entanto o troar dos trovões e o ronco do rio destoam.
– Vou ver o nível da água na estrada – disse o pai. E lá se foi ele seguido pelos guris e pelas meninas mais curiosas. A água corria depressa pelo leito do rio e formava ondas que subiam pela estrada, a cada onda avançava um pouco mais evidenciando que o nível subia, e isso assustava. O pai resolveu então tomar uma decisão, demarcar o limite para saírem de casa.

Barragem do Soturno no Bom Retiro, foto feita de cima da pinguela em maio de 1979, cinco anos antes da nossa história.
– Questo sasso. – Esta pedra é o limite, se a água passar dela temos que sair de casa senão ficaremos ilhados. Os guris continuam jogando cartas e ao fim de cada partida um vai até a estrada ver o nível da água. A mãe continua perto do fogão esfregando as mãos, as meninas ouvem a leitura da Verônica, enquanto a nona continua no quarto a rezar. Já foi um terço, dois, um inteiro (rosário), mais um e a rotina continua. A mãe é intimada a ir descansar, os outros continuarão a vigília. Já é madrugada e de repente um estrondo sinistro e assustador seguido de um aumento do volume dos sons do rio.
– Maria Vergine! – gritou a nona – o que foi isso?
Um ruído de árvores arrastadas se aproxima da casa, o rio começa a roncar aliviado como se uma barreira tivesse sido eliminada. E foi… a pinguela que retinha galhos de árvores e até árvores inteiras, fazia uma barreira que dificultava o curso da água, até que ela, demonstrando sua força, rompeu os cabos de aço e levou abaixo aquele estorvo. Secretamente já havia levado a barragem da estrada, e levava abaixo tudo o que poderia dificultar seu caminho. Foi a pinguela, mas está escuro, não dá pra ver os detalhes o observador da pedra limite com guarda chuva e lanterna observa a água chegando, centímetro após centímetro conquistados pela água a cada onda. A água chega na pedra, algumas ondas já ultrapassam, mas a pedra ainda não está coberta. Alguma onda cobre a pedra, a tensão aumenta, as cartas ficam de lado e os observadores se juntam ao redor da pedra, as palavras do pai ecoam nas mentes.
– Se a água passar da pedra temos que sair de casa.
Uma onda um pouco maior cobre a pedra por completo e recua, outra onda avança e recua, as ondas passam a determinar o ritmo da respiração da família. Os avanços e recuos começam a ficar assimétricos, a água começa a recuar lentamente, começa a se distanciar, já não atinge mais a pedra. Todos respiram aliviados, as orações da nona alcançaram mais um milagre, como tantos outros na família, agora poderiam se recolher para a cama. Já é madrugada está quase na hora do galo cantar, mas o grupo familiar exausto se recolhe para a cama…
O ruído da água ainda alta no rio, mas agora correndo tranquila e baixando lentamente embala o sono da família, que não dura muito. São despertados ainda de madrugada, lá pelas 10 da madrugada, pelos gritos e assobios do Tarcísio e do Horácio, enviados especiais do tio Pio para ver como estava a mãe, o irmão e a família. Os dois foram direto para a pinguela, que não estava mais lá.
– Meu Deus! O tio e a nona estão ilhados. – fala o Horácio.
– Bem, Bem… mas eles tem o nosso caíque que esta guardado no galponeto deles – completou o Tarcísio.
– Mas parece que não tem ninguém em casa. Acho que foram se abrigar na escola.
– Acho que não. O trator ainda tá com o reboque na frente da casa…
– Então vamos gritar pra ver se acordamos eles…
E foi o que fizeram. Não tardou muito a turma começou a acordar com o gritedo. Aí eles disseram do caíque, e souberam que todos estavam bem. O caíque foi largamente utilizado pela comunidade como meio de passagem do rio por algum tempo já que a barragem e a pinguela tinham ido agua abaixo.