Festa no Varejão (terceiro episódio da bicicleta do padre João)

(A primeira parte desta história ouvi de minha mãe, Bazilides Carolina Piovesan, a segunda do tio Ângelo Chierentin).
“Naquele tempo”, como começava o sermão do padre Francisco Goetler, muitas vezes a única missa dominical que os católicos podiam assistir no ano era na festa do padroeiro. Que segundo meu pai podia acontecer seis meses antes ou seis meses depois da data, mas tudo bem, quando o padre podia vir aí tinha a festa. O padre vinha de aranha¹ de Palmeira das Missões e se hospedava na casa de meu avô Bortolo, que o acompanhava para responder a missa em latim. De lá do vô eles iam passando pelas capelas, durante a semana e rezando missas, que apesar de eventos extraordinários, eram missas comuns. A capela que estivesse próxima da festa do padroeiro ficava com a missa do domingo, aí como todas as capelas próximas estavam sabendo todos se reuniam lá para a festa. Daí uns três ou quatro meses o padre voltava e fazia outro tour de confissões, missas, batizados e casamentos. Esta era a parte da tradição religiosa.
Outra parte da tradição, na área da intendência da Linha do Coqueiro, do inspetor concessionado, Jardelino de Oliveira, era a fartura de churrasco e bebida nas festas, que em geral acabava com uma briga homérica no final do dia. Há esta hora o padre já tinha ido embora e o inspetor nem sempre conseguia acalmar os ânimos o que em geral acabava em algum ferido ou morto. Motivo para a próxima briga na próxima festa. Isto não era diferente no Varejão, distante uns 15 quilômetros da Vila Trentin.
Provavelmente os brigões confessavam seus desejos de vingança para o padre antes da missa o que começou torná-lo receoso de festas na região. Foi aí que o santo homem teve uma ideia brilhante – os gringos recém instalados na região, Vila Trentin e Jaboticaba, gozavam de fama de cidadãos respeitáveis, eles poderiam impor respeito nas festas, e quem sabe ajudar o inspetor a manter a ordem.
Era lá pelo mês de junho e a visita do padre coincidia com o padroeiro do varejão, São João, ia ter festa. O padre convidou para fazerem parte da comitiva, os quatro patriarcas, Bortolo e Antônio Trentin e Aurélio e Atílio Zanon, que apesar de gostarem de um bom vinho, não iriam beber e todos iriam munidos de calabrotes² que ficariam guardados na aranha para serem usados se fosse necessário. Estava quase tudo pensado, menos o transporte, a princípio iriam os cinco na aranha do padre e na do tio Antônio. O padre chegou na terça-feira, rezou missa em Jaboticaba, combinou com os tios Atílio e Aurélio e veio pra vila Trentin, onde ficava religiosamente hospedado com o Bortolo, meu avô, de onde sairia para rezar missas nas capelas da Santa Rita, São Luiz, Santa Maria Goretti, Três Mártires (na época rezava na escola Roque Gonzales, a velha, depois o Brizola mandou construir uma outra. Um dia destes conto a história das escolas. Eu estudei o primeiro e segundo anos na velha, depois na Brizoleta). Desnecessário é dizer que o padre Francisco viu a bicicleta do Lino por lá e ficou fascinado, ele já tinha usado uma delas na Alemanha antes de vir para o Brasil.
Quando no sábado o tio Antônio falou que não poderia ir não tinha como comunicar aos outros que não teria transporte. Chegado o domingo os Zanon iriam a pé até a encruzilhada da Linha São Luiz onde teriam o transporte por aranha. Como só tinha uma aranha o padre só poderia levar os Zanon, mas nenhum deles sabia responder a missa em latim, o Bortolo não poderia faltar, foi aí que o padre teve mais uma ideia brilhante: – ele iria de bicicleta, com a bicicleta do Lino, e os outros três de aranha, estava resolvido o problema.

Tio Angelo Chierentin, grande artífice em madeira, foi ele que fez a minha bicicleta de pau. Na foto aparecem ele, a Catia e a tia Rosa tendo ao fundo uma roda d'água construída por ele.

Tio Angelo Chierentin, grande artífice em madeira, foi ele que fez a minha bicicleta de pau. Na foto aparecem ele, a Catia e a tia Rosa tendo ao fundo uma roda d’água construída por ele.

(aqui começa a narrativa do tio Ângelo) Paralelo a isso a juventude também estava planejando ir à festa e o meio de transporte escolhido foi “bicicleta de pau” para acompanhar o padre. Os da aranha pegaram a estrada e pouco tempo depois sumiram na frente, o grupo Ângelo Chierentin, Argemiro, Luis, Érico e Santo Trentin e Lino Piovesan, ora passavam ora eram ultrapassados pelo padre. Na descida como gostavam da adrenalina, desciam quase sem freio ganhando grande velocidade e ultrapassando o religioso na maior gritaria, mas quando vinha a subida eles perdiam e eram ultrapassados, na próxima ladeira vinha a revanche.
Depois de passarem pela linha São Luís tinha umas descidas bem acentuadas o que possibilitava, para os mais arrojados, atingir velocidades de um cavalo a galope, pelos meus cálculos uns 40 Km/h. Tinha uma ladeira, um pouco antes do passo do arroio Jaboticaba, que atravessava quase duas colônias, (nos meus cálculos pelo Google, aproximadamente 600 metros) tinha uma curva mediana à direita e terminava no passo do rio, lugar espraiado que permitia atravessar pulando sobre as pedras ou por dentro d’água. Pelo lado de dentro da curva tinha um barranco bastante alto e um canavial de um casal de idosos que morava num ranchinho ao lado. Depois de empurrar as bicicletas por aproximadamente cem metros da subida depois do seu Elias Manfio, a turma embarcou nas bicicletas e despencou ladeira abaixo, o padre, precavido, foi segurando no freio para não pegar muita velocidade, pois conhecia o fim da ladeira onde todos teriam que parar para atravessar o passo com as bicicletas nas costas, a comitiva de aventureiros confiava na possibilidade de frear antes do rio. Com o aumento da velocidade ainda antes da curva, e da adrenalina, a turma começou a maior gritaria, que chamou a atenção da senhora idosa. – Meu Deus! – Gritou ela – Uma carroça em disparada vai ser um desastre na chegada do passo. Imediatamente correu para o canavial que ficava sobre o barranco por onde a “carroça em disparada” deveria passar e tratou de fazer alguma coisa para parar os cavalos. Cortou uma grande braçada de cana e começou a jogar na estrada no exato momento que a troupe entrava na curva, não houve tempo para frear a idosa acabava de fazer um “strike”, o único a cair com elegância foi o religioso que vinha mais de vagar e um pouco atrás.
Inda bem que tinha o rio logo abaixo para lavar-se, se por na linha e prosseguir até a festa do Varejão.
Terei que pesquisar mais um pouco para narrar a aventura da festa, até qualquer dia.

1. Aranha – Espécie de charrete com apenas duas rodas, tracionada por um cavalo que podia transportar até três pessoas.

2. Calabrote – Relho de cabo fino fácil de carregar sob os pelegos. (RS)

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