O cupido ocupado

O ano era 1944, o local, a vila de Nova Palma e arredores, mais precisamente entre o Bom Retiro e a Linha Base. Na quarta colônia da imigração italiana o cupido andava extremamente atarefado – também pudera com aquelas famílias de 12; 15; 17 ou até 24 filhos – que não tinha mais como dar jeito de juntar todos os casais possíveis. Acho que ele deu uma cochilada, aí os morcegos assumiram seu posto – Isso mesmo! Os morcegos…
– Pois bem! Vamos à história.
Aqui é importante ficar fiel aos fatos, toda a juventude daqueles dias se reunia na igreja, no domingo de manhã, vindos de todas as linhas, desde Ivorá até a Linha Seis – da Linha Sete em diante moravam os alemães, mas estes não iam à missa, eram protestantes e tinham sua igreja e frequentavam o culto na Linha Sete. Os italianos, todos católicos, jamais faltavam à missa na igreja da Santíssima Trindade em Nova Palma, é claro que nem todos iam para rezar, muitos iam para ver as gurias ou elas para ver os rapazes. Depois da missa alguns momentos de cochichos e pequenas conversas e cada família voltava para casa, para suas linhas ou redutos, à tarde se reuniam para jogar bochas ou alguma outra atividade social, até aí tudo bem, os rapazes se encontravam com as moças e os casais iam se formando naturalmente. O trabalho do cupido estava funcionando muito bem – acho até que ele andou cochilando – quando começou a acontecer um probleminha, algumas linhas tinham mais moças, outras mais rapazes e começava ficar difícil juntar todas as parelhas. O jogo de bochas até que levava rapazes de uma linha para outra, mas não dava conta do recado. O vigário dava sua força promovendo festas religiosas em cada recanto tentando atrair a juventude de um lado para outro, mas ainda assim tinha muitos casais para juntar. Até porque muitas moças não se sentiam atraídas por jogadores de bochas, ou de futebol, ou seja lá o quê, elas queriam ver outras qualidades nos seus pretendentes.
Chega de enrolação voltemos aos fatos – 1944 no final do inverno, Linha Base, Linha Um e Linha Dois que ficam na região mais montanhosa e pedregosa convivem com uma tragédia os morcegos raivosos dizimam o gado, e é claro os bois de canga, responsáveis pelo arado e pela preparação da terra. “Tutti i contadini”, os colonos da região, apelaram com a ajuda do vigário nas missas de domingo, por colonos de outras linhas que tivessem bois disponíveis para arar suas terras.
Aqui a história se particulariza. Como eu quero me deter aos fatos só tenho provas de um caso, por isso vou me limitar a ele: – Na Linha Base o Valentin Piovesan e os Trentin, o Bortolo e o Jorge, ficaram sem bois de tração para arar a terra. O Toni Torccio, meu avô do Bom Retiro, enviou o Achiles e Lino para lavrar as terras do Tio Valentin Piovesan. O Achiles era conhecido como moço trabalhador e o Lino, piazote de 16 anos, era conhecido na região por falar com os animais, os bois dele obedeciam até os seus pensamentos.
Era início da primavera, tempo de lavrar a terra e começar o plantio. Na família do Bortolo não falta mão de obra, O Gervasio, a Rosa, a Basilides, o Luis, a Ercilha, a Iria, todos já grandinhos puxam uma enxada que dá gosto, os pequenos ficam em casa, mas preparar toda a terra sem bois seria impossível. A saída veio com os irmãos Piovesan, Achiles e Lino que em poucos dias lavraram a terra do Valentin e estavam disponíveis para ajudar outros vizinhos. O plantio estava garantido.
Trabalho duro, mas sempre no fim da tarde, depois da janta, tem um tempinho para contar histórias, a luz de lamparina, ou jogar cinquilho com pipoca e vinho. O jogo exige cinco participantes em cada mesa – este é o tempo para socializar – na mesa principal ficam o Bortolo, com o irmão Jorge e o filho Gervásio, o Tio Valentin e o Achiles. Na outra mesa ficam a Rosa, a Basilides, o Luis, a Ercilha e o Lino. O jogo não tem parceiro fixo e cada rodada jogam dois contra três, é muito divertido. Fica fácil de imaginar o tipo de conversa de cada mesa, na dos patriarcas e os mais velhos provavelmente se fala de terra, trabalho, colheita entre outros, na mesa dos jovens, brincadeiras, risadas, etc…
– Bah! Eu ainda não comecei contar a história, – pois bem, depois do jogo é preciso descansar para estar pronto para mais um dia de trabalho.
O Achiles e o Lino alojados no quarto de hospedes, na cantina do Bortolo, tem liberdade para conversar e é aí que “a porca torce o rabo” como se diz em gauchês. O Lino leva o primeiro grande pito de sua vida:
– “Onde se viu um piá de 16 anos se refestelando pras moças, inda mais em se tratando das filhas de um respeitável senhor, amigo e vizinho do tio Valentin, de uma família tradicional italiana.”
– Esta parte da história o Lino, meu pai, me contou por alto. Certa vez, aí eu resolvi tirar a limpo e tentei conhecer a versão do Achiles, mas só consegui mais alguns detalhes, ele era o mais velho da família, sério, sisudo e taciturno, isto é de poucas palavras. Uma história quase apagada pelo tempo se não fosse pelo Pio, irmão do meio dos dois. Visitei ele, no ano passado, e quando comecei a falar das cartas de amor que o Lino e a Bazilides, trocaram durante os seis anos de namoro…

As duas primeiras cartas trocadas pelo casal, tenho a coleção toda, exceto uma que não chegou ao destino.

As duas primeiras cartas trocadas pelo casal, tenho a coleção toda, exceto uma que não chegou ao destino.

– Ah! Esta é a história que eu queria contar, o início do namoro de meus pais.
Aí ouvi mais detalhes da história, pois o tio Pio era quem, segundo ele, que escrevia cartas que meu pai assinava, no início do namoro, pois ele não tinha paciência para escrever e julgava a letra muito feia. Chegando em casa fui imediatamente ver as cartas, o fato estava documentado – as primeiras cartas tinham uma letra no texto e outra na assinatura, a medida que o namoro foi avançando as cartas mudaram de letra e de tratamento, os termos no início um tanto formais foram evoluindo até o casamento. Esta história toda que acabou por aproximar o casal Lino e Bazilides, também levou o Tio Pio para o lado de Linha Base pros lados de outro vizinho do tio Valentin, o velho Pegoraro, que tinha uma filha muito prendada, mas esta é outra história…
– Bem com isso, como vocês podem ver que em Nova Palma até os morcegos andaram fazendo o trabalho do cupido enquanto ele cochilava…

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