O ciclo da mandioca – parte 1

No finalzinho de abril sempre dava uma esfriada
Ai vinha o verãozinho lá por meados de maio
Era o tempo do trabalho, guardar rama de mandioca
Pra protege-las do inverno e da geada matadeira
Que não deixava viva nenhuma rama solteira
Das soltas no mandiocal.

Sempre que sinto algum friozinho aqui na cidade grande me lembro a velha Palmeira onde vivi minha infância. Lá tinha trabalho e graça, se brincava trabalhando, e um dos trabalhos bons era guardar rama de mandioca. Sempre que fazia frio representava um perigo pra vida das mandioqueiras. Só ficava viva a parte da rama enterrada, isso garantia que a mandioca brotaria no ano seguinte e as raízes continuariam a crescer. Mas se agente queria expandir o mandiocal ou plantar noutro lugar tinha que guardar as ramas para não morrerem da geada. Então, guardar ramas, e depois a cerimônia do plantio eram trabalhos que as crianças adoravam. Bem! Não sei se todas as crianças, mas para a nossa turma era tempo de diversão.

Talvez pela vizinhança pois nossas terras eram lindeiras, hoje não se usa mais esta expressão para dizer que faziam divisa. Na verdade as melhores lavouras de mandioca, de milho, de arroz e até um erval do tio Luís ficavam bem na frente de nossa casa. Então quando tinha estes trabalhos especializados, em geral, se reunia a turma lá de casa o Leo, o Leonildo e eu e lá do tio Luís o Selito, o Dimas e a Margarida, Vez por outra vinham também a Benildes e a Zélia, mas como elas eram maiores em geral trabalhavam e por isso ficavam fora do grupo.

O trabalho?? era muito simples, um adulto, ou um dos maiores, com um facão cortava as ramas mais ou menos uns seis dedos de altura, pra sobrar o toco para arrancar a mandioca, se fosse necessário, e ia fazendo feixes. A gente escolhia um pé de erva, não muito perto porque perdia a graça, e limpava o capim ao redor. Depois era só transformar cada um num caminhão de transporte e fazer uma estrada, uma para ir e outra para voltar. Brum brum, a gente dava o arranque no caminhão e o transporte começava. Cada um carregava quanto podia e íamos empilhando as ramas de pé ao lado da árvore vou toco escolhido. Quando a rama já estava toda empilhada, aí vinha outra parte muito divertida. A gente tinha que buscar capim e palha para fazer a cobertura, afinal as ramas tinham que estar protegidas da geada. Para isso servia capim rabo-de-burro, touceiras de macela secas, só que as vezes tinha uma lechiguana, bem, aí é outra história, um dia deste seu conto, e até mesmo grama seca. As ramas tinham que ficar perfeitamente cobertas e depois disso tinha que por alguma terra por cima pra que o vento não destapasse. Pronto! as ramas de mandioca para o novo plantio estavam garantidas, mas ainda tinha um resto de dia e a gente tinha que continuar em movimento senão morria de frio.

E pra não ficar parado o que é que a gente fazia
Na tarde que tinha sol mas mesmo assim era fria.
O brincar de esconde-esconde tinha um lugar ideal.
As ervas eram pequenas, uns dois metros ou pouco mais,
Tinha macela, capim e moitas de maria-mole.
Fumo bravo e algum timbó e até toca de tatú.
Pra gente de pé no chão capim seco, o paraíso
explicar não é preciso, o que é preciso é brincar.

O trabalho terminava cedo e sempre se podia aproveitar o resto da tarde par alguma atividade construtiva, como por exemplo aprender a elaborar regras e seguir. Então vamos lá: Primeiro tem que escolher a raia de ferrolho, o lugar onde aquele que fecha, o contador, esconde o rosto e conta por algum tempo enquanto os outros se escondem. Não vale espiar. Este é o lugar de segurança onde cada um tem que bater antes do contador e dizer “um, dois, três pra mim”, aí tá salvo. Se o contador achar alguém e bater “um, dois, três para o Fulano” aí tá morto. O primeiro morto é o que conta na próxima rodada. Vale se esconder em qualquer lugar, até em toca de tatú, mas o segredo é correr e bater no ferrolho num momento de distração do contador/procurador. Tinha até quem ficava quietinho atrás do contador e quando este se afastava do ferrolho para procurar, bastava dar um pulo e gritar: -Um, dois, três pra mim! Quando se usava um pé de erva como ferrolho tinha até quem subia discretamente na árvore e depois aproveitava um momento de distração do contador e pulava pra se salvar. Ah! O contador tinha que contar até cinquenta e dizer: – Lá vou eu! Quem não se escondeu é meu. Quando alguém não sabia contar além de dez contava – umdoistresquatrocincoseiseteoitonovedez dez, umdoistresquatrocincoseiseteoitonovedez vinte, umdoistresquatrocincoseiseteoitonovedez trinta, e assim até cinquenta e finalizava Lá vou eu! Quem não se escondeu é meu. E saía a cata dos outros participantes. Que ia matando ou iam se salvando até o último ser encontrado.

Dois problemas eram relativamente comuns nesta brincadeira: quando alguém se escondia numa macela que tinha uma lechiguana, aí era o fim da picada, ou melhor o começo da picada e o sujeito saia correndo sem observar nada e acabava morto. Ou quando tinha um formigueiro aí estava perdido, ou achado quando começava a gritar.

Depois disso tido resolvi fazer uma lista do que se aprendia com tudo isso.
1- Só os maiores podem usar o facão.
2- Cada um faz força de acordo com seu tamanho.
3- Tem que respeitar as regras de trânsito.
4- Tem que proteger as ramas para não morrerem de frio.
5- Palha voa com o vento, tem que ter peso sobre ela.
6- Brincar é divertido e esquenta.
7- Correr descalço no capim seco é bom.
8- Para brincar tem que saber contar.
9- Tem que observar as regras do jogo.
10- Lechiguana pica e dói.
11- Formiga e formigão picam e dá coceira.
12- Quando um adulto diz “hora de ir pra casa” se a gente não for aparecem uns riscos vermelhos doloridos nas pernas.

Eu era feliz e não sabia.

Esta entrada foi publicada em Geral. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário