A água que brincava com a gente

Na caixa d’água se juntavam as águas dos arroios do Papagaio e do Moinho. As do Papagaio corriam fora do leito por aproximadamente 800 metros e raramente transbordavam no ladrão, mas as do Moinho sempre tinham grandes histórias para contar. Perto da ponte da estrada do seu Fassini já se separavam em dois grupos, a mais selvagem não se sujeitava a barragem e saltava por cima para poder alimentar as cachoeiras, era a mais barulhenta mas não a mais curiosa. A água mais dócil era a mais curiosa e divertida, saia do leito do rio e andava mansamente por uns 250 metros até a caixa d’água, mas no caminho tinha muitas tarefas a cumprir, em especial nos últimos 50 metros onde aquela mais curiosa se espremia numa bica de madeira para cair no tanque onde as tias lavavam a roupa, certamente esta tinha muitas histórias para contar para suas irmãs que tomavam outros caminhos. Ficava quietinha no tanque ouvindo as fofocas e as histórias de tudo o que acontecia na vila e quando não servia para esta fim pulava pra outra bica e ia até o banheiro. Esta era a água curiosa, mas não era a mais sapeca, a mais sapeca seguia uns 10 metros adiante até o ladrão. Não! Não é o que vocês estão pensando, o ladrão era uma espécie de controlador de nível da caixa d’água, quando ela vinha em excesso dava um jeito de saltar por aí. A outra água ia até a caixa onde se juntava com a do Papagaio para se jogar cano abaixo juntando todas as forças para fazer a turbina girar e produzir a eletricidade da vila. Vou falar disso qualquer dia. Hoje é dia de falar da do ladrão.

No ladrão, perto do monte de serragem, era um lugar de brincar com a água ou dela brincar com a gente. A água do ladrão gostava de ver a gente ser xingado, ela molhava nossas roupas, fazia barro para nos sujar, quando era mais frio nos provocava resfriando e aí nossos pais reclamavam e ela ia embora dando risada. Ah! Ela adorava respingar tudo movimentando as rodas d’água. Nossas rodas d’água eram feitas com uma simplicidade franciscana, um tarugo quadrado de madeira com quatro tabuinhas pregadas e dois pregos na ponta servindo de eixo. E tinha o moinho do Catarino, mas este era uma coisa a parte. Também era culpa da água do ladrão as broncas que a gente levava do vô por pegar as ferramentas dele.

A carpintaria do vovô era um verdadeiro santuário para um bichinho carpinteiro como eu, lá eu me sentia no paraíso, mas quando ele estava trabalhando a gente não podia entrar e quando ele não estava a carpintaria ficava fechada. Eu sei! Vocês estão dizendo: Como é que você sabe disso se não se entrava lá? Bem, é que para fazer as rodas d’água a gente precisava de ferramentas, a mais usada era o serrote de costas, um serrote que vivia sempre afiado que é uma navalha. E a calha de cortar em ângulo, uma calha de madeira com fendas em diversos ângulos e no esquadro para fazer esquadrias. O serrote de costas era usado porque ficava sempre reto, era firme, e a calha guiava o corte. Então a gente pegava uma ripa quadrada e cortava o corpo da roda e depois uma mais fina e fazia as quatro tabuinhas, as pás da roda, e pragava em sequência pronto estava feita a roda d’água. na calha também tinha umas marcações para a gente cortar todas do mesmo tamanho sem precisar medir. No entanto acho que a água gostava mais era do moinho do Catarino. Nesta o principio motor era uma roda como outra qualquer, com uma diferença, o corpo (eixo) da roda era mais longo e arredondado. nele passava a correia que tocava outros eixos e polias com engrenagens de dentes de prego e furos, uma traquitana digna de um engenheiro moderno. A engenhoca ficava longe da água e este distanciamento era dado pela correia, só que a gente não tinha correia. Mais um motivo pra bronca, a gente usava a correia do rebolo do vô.

O rebolo do vô Bortolo era uma maquina digna de nota. Ele precisava das ferramentas sempre afiadas e afiava também as facas da cozinha e dos vizinhos. Algum tempo mais tarde esta tarefa na vila passou para o tio Anjo, mas isso é outra história. O rebolo tinha um pedal que tocava uma roda grande, esta por sua vez tinha uma correia que ia até o eixo do rebolo onde tinha uma roda pequena então o rebolo funcionava com grande velocidade dando melhor fio nas ferramentas em menor tempo, sem contar que o afiador ficava com as duas mãos livres para segurar a ferramenta. Não era como aqueles rebolos que a gente tocava a manivela com uma mão e segurava a ferramenta com a outra. Só que as vezes a correia fugia e ia brincar com as crianças no moinho do ladrão. Como acontecia isso? Fácil! O Catarino levantava o carpinteiro até a altura da janelinha de trás da carpintaria ele se agarrava na bancada de carpinteiro e de lá pulava pro chão ia até o rebolo e tirava a correia. Depois usava a caixa de ferramentas como degrau, subia na bancada e descia da janela ajudado pelo usuário da correia emprestada. E lá ia todo mundo ver o moinho funcionar.

Para aqueles que não conheceram as maravilhas do moinho aqui vai uma pálida ideia da diferença das rodas d’água convencionais e do moinho. Só que no moinho a correia também mudava de ângulo os eixos, tinha até eixo na vertical imitando as pedras do moinho de verdade. Mais uma história para contar.

Só o que eu não lembro é porque a gente lavava tanta bronca e eu nunca apanhava, quase sempre o rabo-de-bugiu sobrava para outro. E a correia voltava pro seu serviço original, que, convenhamos, era muito mais chato.

Esta entrada foi publicada em Geral. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário