O sagitariano e o escorpião.

Segundo Pierre Levy, quando desenvolvemos uma tecnologia da inteligência, tecnologia que auxilia nos processos de conhecimento, raciocínio ou memória, passamos a usar as nossas capacidades para outros fins e deixamos às tecnologias o trabalho de arquivar estes dados. Por isso, atualmente é bastante difícil encontrar um jovem que tenha memórias de sua infância anterior ao quarto ou quinto ano. Tudo foi registrado em foto, vídeo ou outra tecnologia e os cérebros deixaram de se preocupar com isso. Da mesma forma a escrita, por cristalizar as histórias, que serão lidas “ad infinitum” estão acabando com os contadores de histórias. Para não deixar morrerem as histórias contadas por nossos tios e avós é que eu me proponho a escrever um pouco de minhas memórias, já bastante fragmentadas, mas que podem ser reacendidas com fragmentos de outras histórias, por isso é que eu peço que aqueles que lembram, não importa que seja de forma fragmentada, me ajudem a compor a história de nossa família, naqueles moldes que eram contadas quando éramos crianças.
Na história da Família Piovesan, relatei há pouco de como meu pai, O “Tio Lino” fazia parte da vida das crianças como eu e muitos primos, e até dos que não eram sobrinhos dele. Não muito diferente foi a participação das tias “Sila”, “Dona” e “Mími”, respectivamente Tarcila Trentin, Donatila Trentin e Ludmila Trentin, sem contar das irmãs mais velhas que não tinham apelidos exceto minha mãe, a “Tia Bides”, Basilides Carolina Trentin Piovesan. A história de hoje tem como protagonista a tia Mimi, lembro com muito carinho dela, e vocês entenderão por que em breve.
Não se precisar a data, anos mais tarde soube que eu tinha ao redor de um ano e meio, então deveria ser o ano de 1955, provavelmente na saída do inverno, pois as árvores andavam meio desfolhadas e os tachos de fazer açúcar ainda estavam instalados. A tia Mími estava fazendo carrinhos para a criançada, cortava um carretel de linha ao meio, obtendo assim duas rodas, furava uma lata de sardinhas em dois lugares na transversal e colocava um palito de madeira como eixo e as duas metades do carretel como rodas. Pronto estava feito um carrinho de transportar terra. Eu observava e esperava que saísse o meu. Só que os maiores sempre eram contemplados antes, eu estava ficando impaciente, deveria estar enchendo o saco. Quando pedi mais uma vez pelo meu carrinho ela alegou que não tinha palito para o eixo.
Como sempre fui um homem decidido, como é comum aos sagitarianos, tomei a iniciativa,

como se faz açucar

Na falta de uma foto dos tachos do tempo do vovô, resolvi ilustrar este post com o trabalho de fazer açúcar com o tio Marcelino, a mãe, o Leonidas, o Leonildo e a Leda ao fundo

peguei uma faca de mesa do “secchiaro” da vó, daquelas com cabo grosso de ferro e ponta redonda, e fui ao mundo procurar um eixo pro meu carro.
Saí entre o moinho e o galpão. Passei pelo forno dos tachos de fazer açúcar, pelo engenho de moer cana e fui até os fundos do engenho de serra, melhor entre o engenho e a valeta que levava água para a usina. Um pouco antes da ponte de passar com a serragem sobre a valeta achei uma arvoreta que, segundo meu julgamento, deveria ser da grossura ideal para fazer o dito eixo. E comecei a cortar…
Alguma coisa aconteceu que não tenho mais nenhuma lembrança depois disso, elas voltam alguns dias mais tarde. A história continua a partir de relatos de terceiros…
Um dos filhos do Tio Antônio Trentin, provavelmente o Érico ouviu gritos de criança perto do monte de serragem e foi prontamente acudir, me encontrou aos berros, ainda com a faca na mão. Imediatamente pensou que eu tivesse me cortado, mas não achou sinal nenhum de corte, foi então que percebeu uma picada de algum bicho na minha mão direita, próximo da base do polegar. Levou-me para casa e começaram os cuidados médicos do Vovô, mas precisava saber do que foi a picada. Lá foram não sei quantos tios e primos, procurar a fera que me picara. Procura daqui, procura dali e lá estava o quase assassino, um escorpião preto, relativamente comum na região, segundo alguns com capacidade de matar um animal pequeno ou uma criança. Felizmente eu tinha um avô que apesar de abstêmio sempre tinha em casa uma cachacinha com guassatonga, com guiné e outras poções mágicas, assim eu fui remediado, mas ainda correndo risco de vida.
Minhas memórias retornam alguns dias mais adiante. Meu dedo polegar direito desmesuradamente inchado, aí entra em cena outra tia, a Tia Donatila me dizendo que eu morreria se chupasse dedo inchado. Eu não usava chupeta e para dormir, chupava o dedo. Imaginem a angustia de não poder chupar o dedo por medo de morrer, e não poder dormir sem chupar o dedo. Eu não tinha ideia do que era morrer, mas imaginava que seria muito pior do que a dor da picada do escorpião, foram dias de pânico. Eu só conseguia dormir uns pingadinhos no colo da Nona Rosa, que fazia questão de ficar comigo no colo quase o dia inteiro.
Sarei, o dedo desinchou e eu fiquei sem sequelas, a não ser o medo de morrer e, por conta disso, quando me disseram que a representação da morte era o esqueleto, passei a ter pavor de esqueleto, a ponto de não querer passar para o terceiro ano na escola só porque tinha a figura de um esqueleto no livro…

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3 respostas a O sagitariano e o escorpião.

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